No dia da greve geral de 24 de Novembro, a MUBi lançou um repto a todos: façam greve ao carro e vão de bicicleta. Pedimos também que nos enviassem o seu contributo, na forma de um relato de como foi a experiência. Recebemos quase 2 dezenas de respostas, muito variadas, e contámos com o valioso contributo da Ana Santos para fazer a respectiva análise e conclusão, que se segue.

 

Hoje é Domingo e a cidade está calma, parecida aquela que vivemos no Dia da Greve Geral.

O inquérito realizado neste dia pela MUBI, não questionava a mobilização para a Greve mas antes a utilização da bicicleta na mobilidade urbana num dia sem transportes públicos e supostamente muito congestionado de automóveis. Ao inquérito responderam 17 pessoas, 3 mulheres e 14 homens, maior parte de Lisboa e arredores e 2 homens da área do Porto. Deste conjunto, 8 usam  a bicicleta regularmente e, no extremo oposto, 1 homem experimentou pela primeira vez deslocar-se para o trabalho de bicicleta. O texto que se segue inspira-se no tratamento das respostas dadas ao inquérito mas anda muitas vezes às voltas, num registo pueril que não consegue ainda desligar-se das emoções criadas pela curta experiência de seis meses de uso da bicicleta no transito urbano.

 

Os percursos e impressões por eles deixadas: 

Em Lisboa:

– Parque das Nações (Norte) – Alameda Afonsoparedão estoril de bicicleta

– Areeiro – Univ Católica

– Telheiras – Laranjeiras

– Alvalade/Teatro Maria-Picoas

 

Para Lisboa:

– Carnaxide – Campolide

– Algés – Campolide

– Agualva-Cacém – Campolide

– Carcavelos – Picoas

– Restelo – Olivais

 

De Lisboa para:

– Praça de Espanha (Lisboa) – Alfragide

– Alvalade até Miraflores 

 

Fora de Lisboa:

– Amadora – Taguspark

– Charneca (Guincho/Cascais) – CQuebrada

 

No Porto:

– Prelada – Carmo

– Matosinhos-Porto

 

A ida de bicicleta para o trabalho é, digo eu, uma espécie de nudez revigorante e, neste sentido, as sensações despertadas pelos percursos são mais intensas. E para a maioria dos que em, ou para, Lisboa se deslocaram ficou a imagem de uma cidade com menos gente, menos trânsito automóvel e, ainda, em dois casos a experiência é adornada por uma rapariga que circulava numa Órbita. Outros, ainda mais atentos, cruzaram-se com ciclistas não habituais naquele percurso e neles adivinharam um olhar esfusiante característico de quem estaria a viver um ritual iniciático. As poucas descrições indiciam que a viagem de bicicleta, mesmo para aqueles que o fizeram no Porto e se depararam com uma via de cintura interna tão congestionada como de costume, significou tudo menos fadiga e tédio.

Ir de bicicleta para o trabalho explora a tensão entre (uma realidade cruel) uma organização do tráfico insana e insensata, do ponto de vista do uso do combustível e da poluição gerada, e os esforços românticos para a transcender. Os percursos mostram o problema da organização da cidade ligado com a separação e afastamento entre os locais de trabalho e os locais de residência.

Digamos que para quem o fez pela primeira vez o dia marcou uma quebra no absurdo ciclo de viajar, trabalhar e dormir. O escape a este ciclo terá começado logo no serão do dia anterior com o ter de planear o percurso para o dia seguinte. Sim, andar de bicicleta não é a mesma coisa que ir de carro, especialmente para quem mora fora de Lisboa e se depara com grandes eixos viários, todos eles pensados exclusivamente para o transito automóvel. Entre Cascais e Lisboa ou o Cacém e Lisboa o problema não é a geografia, a falta de planura, mas antes a falta de alternativa segura para realizar alguns trajectos do percurso. É nestes percursos longos, ou em trajectos curtos mas inseguros dada a velocidade dos automóveis e a estreiteza da estrada que impelem a sugestão da construção de ciclovias ou a existência de redes de bicicletas partilhadas conjugadas com uma rede de transportes públicos. Entre Cascais e Lisboa, existem hiatos de ligação entre paredões destinados à fruição de tempo de lazer que poderiam servir à mobilidade diária caso existisse ligação entre S. João e Carcavelos, Paço d’Arcos e Caxias e, finalmente, entre Caxias e Dafundo (que até dispõe agora de um estradão em terra mas como não está sinalizado poucos sabem que começa por baixo da ponte do comboio)

Não deixamos de ser os mesmos por ir de bicicleta para o trabalho mas, dado o desafio que para muitos representa largar o carro, faz de nós uns heróis, quando não loucos.  A apitadela, registada em algumas respostas, é um safanão que tem como propósito intimidar a liberdade dessa opção e o seu ruído cala, muitas vezes, as dezenas de outros que não apitaram, que muito bem se desviaram e que até acenaram a dizer adeus, comportamentos solidários que também pautam as respostas dadas.

 

Questões polémicas: a faixa do bus, o sinal vermelho, o capacete  e também a construção da diferença de género

A polémica criada pelo uso das faixas do bus não é mais do que levantar a ponta do tapete e mostrar toda a poeira que debaixo dele se esconde. Um acto simples que questiona a suposta limpeza de uma casa é, de igual modo, parecido ao acto de uma bicicleta que ao passar um vermelho  ou ao circular na faixa bus constituiu um desafio singular e arrojado porque revela a desigualdade de poder escondida por um código da estrada que literalmente favorece quem “mais lata” tem.

Na batalha matinal para chegar ao trabalho a bicicleta tem vitórias retumbantes em percursos urbanos de 7-10 km. É uma guerra de todos contra contra todos, para chegar primeiro, e neste salve-se quem puder marcadamente individualista obedecemos cegamente aos mecanismos de controlo que nos ordenam, dos quais um deles é o sinal vermelho. A obediência cega ao vermelho faz-se porque se espera o verde, uma equidade que regula a nossa existência, ordenadamente uns atrás dos outros lá chegaremos. Mas o sinal vermelho representa a autoridade, um mecanismo que não pode ser pensado apenas como algo repressivo. Passamos sinais vermelhos mas isso enche-nos de culpa porque este sinal é uma figura abstrata de autoridade não questionável. Mais facilmente questionamos a autoridade de um polícia que nos barra a passagem do que um semáforo, porque a máquina não é como os humanos, não privilegia uns face aos outros, trata todos por igual e é por isso que choca tanto ver ciclistas a passar o vermelho a aproveitar o “tempo do vazio” do cruzamento, momento em que fica a salvo porque é visível por todos. A obediência ao vermelho livra-nos de discussões inúteis mas nem sempre acarreta maior segurança às bicicletas.

A primeira experiência numa estrada com automóveis, com eles a ultrapassarem-nos é um verdadeiro salto de fé, temos de abandonar a razão e saltar para a estrada é deixar um estado de conforto e “segurança”, é um acto de auto-determinação e independencia. Esse primeiro dia, mesmo para quem sabe andar bem de bicicleta, é um dia crítico de ruptura. Talvez neste dia se evite estradas de maior tráfego e, nessas, se ande a subir e a descer passeios, até ao instante em que, fartos dessa condição, saltamos para a estrada e descobrimos que parte dos nossos medos eram, no fim de contas, infundados e exacerbados pela nossa anterior condição de motorista. E, paradoxalmente, quanto maiores riscos assumimos mais seguros nos tornamos: ficar na frente dos carros quando parados no semáforo, partir segundos antes de cair o verde, ser o mais indiscreto possível a atravessar uma rotunda é, no fim de contas, apostar na visibilidade desafiadora que nos mantem no campo de visão dos automobilistas e, por isso, nos protege.

Depois de meio ano de experiência descobri que o blazer me protege mais que o capacete porque as cotoveleiras de feltro, que enfeitam o dito, são símbolo de quem vai para o trabalho, ie, de quem não “os” faz desviar, leia-se perder tempo, por andar a passear; a reacção é mesmo a de se afastarem, sim, porque não tendo ela uma boa perna à mostra como nas capas da revista, não vale a pena o percalço e mais vale dar-lhe espaço não vá desiquilibrar-se e cair. Sim, com tanta erotização a que sujeita a mecânica das bicicletas, entre porcas e machos que bem oleados umas nos outros se enfiam, habituados a ver figuras de rabos inertes em selim cravados, eles não esperam delas acção, habilidade ou precisão. Mas as que na rua andam não saltaram da capa de nenhuma revista nem sequer são as figuras santas que guarnecem os altares e, por causa da greve, estão entre os mais quilómetros fizeram nesse dia.

Paradoxalmente, o trabalhador que aqui supostamente fura a greve é o sujeito mobilizado contra a “automovilização”, que se atira para a frente em duas rodas e diz que é esse o caminho a seguir.

Ana Santos

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