Contributo e propostas da MUBi para o Orçamento do Estado para 2021

Resumo

Com a pandemia de Covid-19, tornou-se clara a urgência de requalificação dos espaços urbanos e de mudança do paradigma de mobilidade. A utilização da bicicleta traz diversos e comprovados benefícios ambientais, sociais, económicos e de saúde pública. Em acréscimo, é o único modo de transporte que responde ao triplo desafio de i) recuperação económica e criação de emprego, ii) crise climática e iii) distanciamento físico necessário pela pandemia. Constitui, por isso, um elemento essencial para a resiliência das cidades e a recuperação sustentável do país.

A MUBi defende um reforço significativo do investimento na mobilidade em bicicleta por parte do Estado, garantindo pelo menos 5% do orçamento total do sector de transportes em 2021 e aumentando progressivamente para 10% até 2025.

Em linha com a recomendação da Assembleia da República ao Governo, consideramos essencial a priorização e aceleração da execução da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável 2020-2030 (ENMAC 2020-2030) e da prossecução dos seus objectivos, em resposta à crise da pandemia de Covid-19.

O Orçamento do Estado para 2021 deverá alocar verbas para a execução da ENMAC 2020-2030 e a concretização das suas medidas, e em particular para:
– Campanhas para alteração da cultura de mobilidade
– Apoio à criação de redes de percursos seguros para a utilização da bicicleta
– Implementação de soluções que promovam a complementaridade da bicicleta com os transportes públicos
– Reforço dos incentivos à aquisição de bicicletas
– Programa de incentivos às deslocações pendulares casa-trabalho em bicicleta
– Programa de apoio às reparações de bicicletas
– Programa de apoio à micrologística urbana em bicicleta
– Apoio ao desenvolvimento de Planos de Mobilidade Urbana Sustentável por parte dos municípios portugueses
– Formação de técnicos de organismos públicos nas áreas da mobilidade activa e sustentável

1. Enquadramento

A pandemia de Covid-19 trouxe enormes desafios económicos, sociais e ambientais. Tornou-se clara a urgência de requalificação dos espaços urbanos e de mudança do actual paradigma de mobilidade. Governos de numerosos países, regiões e cidades de todo o mundo têm vindo a tomar medidas sem precedentes e a lançar avultados programas de investimento de apoio e estímulo aos modos activos de deslocação e de transformação das cidades em locais mais humanos, seguros, saudáveis, amigos do ambiente, resilientes e sustentáveis.

O sector da mobilidade e transportes é um dos elefantes na sala no que respeita às emissões de poluentes e gases com efeito de estufa (GEE). É responsável por 23% das emissões totais de GEE e por 37% do consumo de energia final em Portugal (contra 30%, em média, na União Europeia). Os transportes rodoviários são, de longe, o subsector dominante, e as emissões rodoviárias têm vindo a aumentar desde 2013.

O Pacto Ecológico Europeu e o Plano Nacional Energia e Clima 2030 (PNEC 2030) estipulam objectivos de redução de emissões de GEE no sector dos transportes em 40% até 2030 e 90% até 2050. Estas metas são inconcebíveis de poderem ser cumpridas sem uma significativa transferência modal para a utilização da bicicleta e complementaridade com os transportes públicos. Com este propósito, o PNEC 2030 incorpora um interessante grupo de medidas de apoio e estímulo à mobilidade em bicicleta e à mobilidade activa, em geral, incluindo a implementação da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável 2020-2030.

Um recente estudo (análise pré-Covid) da Aliança Europeia de Saúde Pública (EPHA na sigla original) revela que os custos anuais de saúde resultantes da poluição do ar são de 1159 euros para cada habitante em Lisboa e 950 euros no Porto, e para as duas cidades em conjunto de 862 milhões de euros por ano. A poluição do ar, que era já responsável por cerca de 15 mil mortes prematuras a cada ano em Portugal devido à exposição a partículas finas, resultantes principalmente do tráfego automóvel nas zonas urbanas, veio agora constituir-se como um factor agravador de comorbilidades associadas a maior risco e taxas mais elevadas de mortalidade por Covid-19.

Os benefícios socioeconómicos quantificáveis da actual utilização da bicicleta na União Europeia (UE) estão avaliados em mais de 150 mil milhões de euros por ano. Mais de 90 mil milhões de euros representam externalidades positivas no ambiente, na saúde pública e nos sistemas de mobilidade. Destes, cerca de 73 mil milhões de euros correspondem a benefícios de saúde (redução de mortalidade e de morbilidade), resultando em consideráveis reduções de custos para os Sistemas Nacionais de Saúde. Em comparação, um estudo recente da Comissão Europeia avaliou as externalidades negativas do transporte rodoviário motorizado, i.e. os custos para o ambiente, saúde e mobilidade, em 820 mil milhões de euros anuais na UE, dos quais 16.8 mil milhões de euros em Portugal (7.2% do PIB do país).

O sector económico da bicicleta (vendas e reparações, indústria, infraestruturas, turismo e serviços) empregava em 2014 na Europa 650 mil pessoas a tempo inteiro, estimando a European Cyclists’ Federation (ECF) o potencial de crescimento para mais de um milhão de postos de trabalho com a duplicação da quota modal da bicicleta. O sector da bicicleta tem um rácio de empregos por volume de negócio superior ao de outros sectores de transportes, oferecendo assim um maior potencial de criação de postos de trabalho. Ademais, estes são geograficamente mais estáveis que em outros sectores, beneficiam as economias locais e proporcionam acesso ao mercado laboral a trabalhadores com menores qualificações. 

Só a indústria portuguesa da bicicleta emprega directamente perto de 9 mil pessoas e indirectamente cerca de 30 mil. Com 2.7 milhões de bicicletas produzidas, e mais de 400 milhões de euros em exportações, Portugal foi em 2019 o maior produtor de bicicletas da Europa.

O desenvolvimento tecnológico e o crescimento do mercado da bicicleta com assistência eléctrica tem vindo a auxiliar o acesso à utilização da bicicleta por um espectro cada vez mais largo da população (faixas etárias, condições físicas, distâncias, orografias). A Deloitte prevê que entre 2020 e 2023 sejam vendidas no mundo 130 milhões de bicicletas eléctricas, face a 21 milhões de veículos automóveis eléctricos durante toda a próxima década. Em conjunto com a difusão e expansão de sistemas de bicicletas partilhadas, a bicicleta, convencional e eléctrica, adquire um enorme potencial para proporcionar uma significativa proporção de deslocações diárias. No entanto, para que tal aconteça deverá ser assegurado um ambiente que proteja e priorize a bicicleta, e assim tornar-se uma alternativa viável ao automóvel para cada vez mais pessoas e multitude de deslocações quotidianas.

A bicicleta veio, ainda, durante a pandemia de Covid-19 provar-se um modo de transporte saudável e seguro. A Organização Mundial da Saúde recomenda a sua utilização, ou o caminhar, nas deslocações necessárias, sempre que possível. O uso da bicicleta permite o distanciamento físico e ajuda a cumprir os níveis de actividade física recomendados, reforçando o sistema imunitário e reduzindo o risco de várias doenças graves, como hipertensão, diabetes, obesidade, alguns tipos de cancro e outras doenças crónicas. 

A bicicleta contribui, também, para aliviar a utilização do transporte motorizado particular devido a um receio na utilização dos transportes públicos, para a redução de congestionamentos de tráfego e custos económicos associados, para a melhoria da qualidade do ar, a redução de emissões de GEE e emissões de partículas, o ruído e o consumo de energia. Contribui, ainda, para reforçar a coesão social, para o comércio e negócios locais e para a qualidade do espaço urbano.

Como aconteceu por quase todo o mundo, também em Portugal a procura pela utilização da bicicleta aumentou substancialmente no decorrer da presente pandemia. Em resultado, registaram-se aumentos significativos também ao nível das vendas, de bicicletas novas e usadas, e na procura de serviços de reparação.

A crise social e económica resultante da crise sanitária durará vários anos. Como observado na crise económica de 2008, é muito provável que a utilização da bicicleta venha a aumentar de importância e assuma um papel indispensável na mobilidade de muitas pessoas.

A mobilidade em bicicleta constitui um elemento essencial para a resiliência das cidades e recuperação sustentável do país. Em acréscimo aos restantes reconhecidos benefícios, é o único modo de transporte que responde ao triplo desafio de:
– Recuperação económica e criação de emprego;
– Crise climática;
– Pandemia de Covid-19 e distanciamento físico.

2. Reforço significativo do investimento na mobilidade em bicicleta

A MUBi defende um reforço significativo do investimento na mobilidade em bicicleta por parte do Estado, garantindo pelo menos 5% do orçamento total do sector de transportes em 2021 e aumentando progressivamente para 10% até 2025. Este investimento deverá permitir a aceleração da execução da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável 2020-2030 e da prossecução dos seus objectivos, em resposta urgente à crise da pandemia de Covid-19.

Estes valores estão alinhados com o objectivos estabelecidos pelo Governo de convergência com a quota modal média da bicicleta na Europa, com pelo menos 10% das deslocações nas cidades portuguesas a serem realizadas neste modo até 2030.

Comparativamente, os Países Baixos investem anualmente 30 euros per capita na melhoria das condições para a utilização da bicicleta, e a Região da Lombardia recentemente anunciou a alocação em 2021 de 11.5 euros per capita do seu Plano de Recuperação para medidas de apoio e estímulo à mobilidade em bicicleta. Também o Governo da República da Irlanda anunciou, no seu programa de governação, que irá atribuir 10% do orçamento total para transportes à mobilidade em bicicleta e outros 10% para o modo pedonal (360 milhões de euros por ano, ao longo dos próximos cinco anos).

3. Orçamento do Estado para 2021

De acordo com Relatório do Orçamento do Estado para 2021 (OE 2021), a promoção da mobilidade activa enquanto aposta para uma melhoria da qualidade de vida das pessoas nas cidades e da atractividade do espaço urbano, é um dos temas-chave em que assentará a política de investimento e actuação ao nível dos transportes e mobilidade urbana para 2021.

O Relatório do OE 2021 menciona que dar-se-á continuidade à implementação da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC), da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal (ENMAP) e do Programa Portugal Ciclável 2030. Tendo em consideração que também indica que será feito um investimento forte no reforço de soluções de mobilidade ativa nas cidades, nomeadamente através do apoio à construção de novas redes de vias cicláveis, do apoio à implementação de soluções que promovam a complementaridade destas soluções de transporte com a rede de transporte público e na manutenção dos apoios à aquisição de bicicletas, a MUBi apresenta as seguintes propostas:

O Orçamento do Estado para 2021 deverá alocar verbas para a execução da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável 2020-2030 (ENMAC 2020-2030) e a concretização das suas medidas, e em particular para:

  • Campanhas para alteração da cultura de mobilidade
    Campanhas, com abrangência nacional, para a promoção do uso dos modos activos e sustentáveis e sobre os prejuízos sociais, ambientais e económicos do transporte motorizado individual. 
  • Apoio à criação de redes de percursos seguros para a utilização da bicicleta
    O investimento em infraestruturas seguras e de qualidade para a utilização da bicicleta tem um papel preponderante para o incremento do recurso a este modo de transporte nas deslocações quotidianas, em alternativa ao automóvel individual, e apresenta razões de custo-benefício muito favoráveis.

    Estas intervenções deverão ter ênfase na redução do tráfego motorizado e da sua velocidade e na segurança nas intersecções, com medidas de acalmia de tráfego.
  • Implementação de soluções que promovam a complementaridade da bicicleta com os transportes públicos, designadamente:
    •  parqueamentos para bicicleta nos interfaces de transporte 
    • e a eliminação de barreiras ao transporte de bicicletas nos transportes públicos
  • Reforço dos incentivos à aquisição de bicicletas
    Como dado a conhecer num recente comunicado conjunto, a MUBi e a ZERO propõem:
    • Os incentivos para a aquisição de bicicletas convencionais devem aumentar para os 50%, com um aumento do limite máximo para os 200 euros e para um total de 5000 bicicletas.
    • Os incentivos para a aquisição de bicicletas com assistência eléctrica devem manter-se nos 50%, com um aumento do limite máximo para os 500 euros e para um total de 5000 bicicletas.
    • Autonomizar a categoria bicicletas de carga, mantendo o incentivo em 50%, aumentando o limite máximo para os 750€ para um total de 500 unidades.

      Em Itália, o Decreto Rilancio (o Decreto de Relançamento) criou um “Bonus Bici” em que reembolsará para a aquisição da bicicleta até 60% do seu valor com um máximo de 500 euros – num total de 210 milhões de euros. É caricato que, mesmo em Portugal o Município de Lisboa disponibilizou três milhões de euros para apoiar a aquisição de bicicletas convencionais e eléctricas, quase dez vezes superior ao que o Fundo Ambiental disponibiliza em 2020 para o país todo.
  • Programa de incentivos às deslocações pendulares casa-trabalho em bicicleta
    A MUBi e a ZERO propõem, também, que se inicie o mais brevemente possível um programa de incentivo a movimentos pendulares casa-trabalho em bicicleta, a exemplo dos que já existem em vários países europeus.

    Este tipo de programas tem um grande potencial na transferência modal efectiva do automóvel para a bicicleta nas deslocações quotidianas, e comprovadamente resulta num excelente retorno positivo para a sociedade, nomeadamente em termos de saúde pública e também, e por conseguinte, de redução do absentismo laboral. 

    O programa francês – l’Indemnité Kilométrique Vélo -, iniciado em 2015, recompensa os trabalhadores em 0.25 euros por quilómetro percorrido em bicicleta, até um valor máximo anual de 200 euros. Na Holanda, os trabalhadores podem agora alugar uma bicicleta por 7 euros por mês, e são recompensados em 0.17 euros por cada quilómetro pedalado. O programa belga existe desde 1999, recompensa os trabalhadores em 0.23 euros por quilómetro, e participam nele mais de 500 mil pessoas, cerca de 11% da força laboral do país.
  • Programa de apoio às reparações de bicicletas
    Dado ser mais sustentável encorajar a reparação de milhares de bicicletas que não eram usadas com frequência, a MUBi e a ZERO consideram fundamental a emissão de vouchers de 50 euros para a reparação de até 50.000 bicicletas.

    No Reino Unido, o governo disponibilizou meio milhão de vouchers de 55 euros para usar em reparações de bicicletas – num total de cerca de 28 milhões de euros. França, num plano anunciado a 30 de abril deste ano para encorajar o uso da bicicleta, criou um programa de vouchers de 50 euros, com o mesmo propósito.
  • Programa de apoio à micrologística urbana em bicicleta
    A bicicleta tem um enorme potencial na micrologística urbana, podendo, de acordo com vários estudos, substituir mais de 50% das viagens para transporte de bens nas cidades europeias actualmente feitas com recurso a veículos motorizados. A logística urbana é responsável por 15% do total das viagens nas cidades, mas contabiliza 30% de toda a energia consumida pelos transportes urbanos. Segundo um estudo recente do Fórum Económico Mundial, a procura por serviços de entrega em ambiente citadino deve crescer cerca de 78% até 2030, resultando num aumento de 36% de veículos de entrega em circulação. Sem qualquer intervenção, isto pode representar um aumento de 30% das emissões da logística urbana e um incremento de 11 minutos na duração média dos movimentos pendulares nas cidades.

    Mais de 90% dos veículos comerciais em circulação são ainda a diesel, e uma única bicicleta de carga pode poupar até 5 toneladas de emissões de CO2 por ano, fazendo da bicicleta uma das mais importantes ferramentas para os objectivos europeus de quase-zero emissões da logística urbana em 2030 e, simultaneamente, para o descongestionamento das cidades.

    O estímulo à descarbonização da logística urbana através da substituição de veículos motorizados por bicicletas é, aliás, uma das medidas constantes do Programa do Governo, uma das prioridades do Programa Nacional de Investimentos 2030, e uma das medidas assumidas no Plano Nacional Energia e Clima 2030.
  • Apoio ao desenvolvimento de Planos de Mobilidade Urbana Sustentável por parte dos municípios portugueses
    Os Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) são instrumentos estratégicos desenhados para satisfazer as necessidades de mobilidade de pessoas e empresas nas cidades e aglomerações para uma melhor qualidade de vida. Baseiam-se nas práticas de planeamento existentes e levam em consideração os princípios de integração, participação e avaliação.

    Os PMUS poderão ajudar a colmatar os muito erros levados a cabo em Portugal no uso de financiamentos comunitários destinados a reduzir a utilização do automóvel em meio urbano e fomentar a transferência modal para os modos activos e mais sustentáveis.
  • Formação de técnicos de organismos públicos nas áreas da mobilidade activa e sustentável
    A formação e actualização de técnicos de autarquias, institutos públicos e outros organismos do Estado nas áreas da mobilidade activa, inclusiva e sustentável e cidadania rodoviária, é fundamental para promover-se a alteração dos actuais padrões de mobilidade.


A Resolução do Conselho de Ministros que aprovou a ENMAC 2020-2030, determinou que as suas 51 medidas estivessem definidas, calendarizadas e orçamentadas até ao final de 2019, o que, passado quase um ano, continua ainda por acontecer. Em linha com a recomendação da Assembleia da República ao Governo, consideramos essencial a priorização e aceleração da execução da ENMAC 2020-2030 e da prossecução dos seus objectivos.

O documento original (com as fontes bibliográficas), em pdf, enviado aos partidos e deputados com assento na Assembleia da República, está disponível AQUI.

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