A diminuição do número de automóveis e da sua utilização, principalmente nas cidades, para podermos cumprir as metas climáticas desta década, a redução do perigo rodoviário nas zonas urbanas e a importância de a sociedade civil ser mais firme e exigente com os decisores políticos nas matérias de mobilidade activa, foram dos temas mais amplamente abordados na Velo-city 2021. Pela primeira vez na sua história, a conferência teve lugar em Portugal, em Lisboa, e a MUBi esteve presente com uma equipa de sete pessoas.

Com cerca de mil participantes presencialmente e muitos mais online, a Velo-city 2021 realizou-se em Lisboa entre 6 e 9 de Setembro.

A importância da Velo-city

Organizada pela European Cyclists’ Federation (ECF), a Velo-city é considerada o maior evento mundial sobre mobilidade em bicicleta. Desde 1980 que reúne anualmente activistas, técnicos, investigadores e decisores que desenvolvem trabalho nesta área, possibilitando que estes troquem experiências e partilhem conhecimentos em áreas tão diversas como infraestruturas, programas, promoção e políticas para a utilização da bicicleta e mobilidade activa.

Em 2013, a MUBi propôs à Câmara Municipal de Lisboa que se candidatasse a acolher a organização da Velo-city. Quatro anos depois voltámos a fazê-lo. Desta vez, juntamente com outras organizações portuguesas na área da mobilidade em bicicleta, participámos no desenvolvimento da candidatura. A proposta da MUBi para o tema central da conferência foi bem acolhida por todos, e assim “Cycle Diversity” foi o mote escolhido para o evento em Lisboa.

Foi, por isso, com grande entusiasmo que, há três anos, recebemos a notícia de que Lisboa tinha sido a cidade escolhida para receber a edição de 2021 da Velo-city. Afinal, um dos grandes objectivos deste evento é influenciar decisores políticos em favor de melhores cidades e uma mobilidade mais sustentável, o que vai ao encontro das ambições da MUBi. Pela primeira vez, em quatro décadas de história da Velo-city, esta iria realizar-se em Portugal.

A Velo-city 2021 aconteceu entre 6 e 9 de Setembro na FIL, em Lisboa, com a co-organização da Câmara Municipal e da EMEL. A MUBi, enquanto membro português da ECF, foi um dos parceiros da conferência.

Acção climática, segurança rodoviária e omeletes sem ovos

Como seria de esperar, não fosse este o assunto da década, todo o evento foi marcado por um grande ênfase no combate às alterações climáticas e no enorme desafio que representa para a sociedade. O sector dos transportes em Portugal, tal como noutros países, é um dos maiores emissores de gases com efeito de estufa. E é impossível cumprirmos as metas climáticas para esta década, sem que haja uma significativa redução do uso do automóvel individual, principalmente nas cidades, a par do incremento da utilização da bicicleta na mobilidade urbana. Este alerta foi partilhado por vários oradores na conferência, entre eles o Vice-Presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans. Neste âmbito, a iniciativa da União Europeia para apoiar 100 cidades europeias na sua transformação sistémica para a neutralidade climática até 2030 mereceu particular atenção. Sem dúvida, uma oportunidade e exemplo para todos os municípios portugueses. Esperamos, por isso, que várias cidades portuguesas, incluindo as principais, aproveitem este desafio e apresentem candidaturas.

Talvez menos esperado tenha sido o destaque também dado às questões da redução do perigo rodoviário, tema abordado por Matthew Baldwin, Director-Geral Adjunto da Direcção Geral de Mobilidade e Transportes (DG MOVE) da Comissão Europeia, e também realçado por vários outros oradores. “Reduzir velocidades, reduzir velocidades”, foi o “mantra” que mais se ouviu em muitas das intervenções ao longo dos quatro dias. A redução da velocidade é universalmente reconhecida como uma receita fundamental para conseguir espaços urbanos mais seguros e inclusivos, reduzir a poluição do ar e fomentar o uso dos modos mais saudáveis de deslocação. 

Matthew Baldwin entrevistado pelo jornal Público: “Devíamos estar a pagar às pessoas por andarem a pé ou de bicicleta nas cidades”. [Imagem: Público]

Até a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR), possuidora de um extenso currículo de críticas por parte de quem usa regularmente a bicicleta e sente na pele a violência rodoviária em Portugal, esteve presente. Ana Tomaz, vice-presidente deste organismo, apresentou os objectivos e pilares da Estratégia Visão Zero 2030, para a qual a MUBi submeteu um contributo no ano passado.

Ana Tomaz, vice-presidente da ANSR, disse que é possível chegarmos a zero mortes nas ruas e estradas portuguesas e que a ANSR está a trabalhar nesse sentido.

Em representação do Governo português, esteve presente o ministro do Ambiente e da Acção Climática. João Pedro Matos Fernandes afirmou que deve ser a bicicleta, e não o automóvel, o modo de transporte individual preferencial para complementar as inerentes limitações do transporte colectivo. Disse, também, que as bicicletas eléctricas serão no futuro o principal modo de transporte nas cidades. E disse, ainda, que “muitas pessoas usam o carro por vaidade ou falta de informação”. Ora, se o Governo assume que a falta de informação é um problema, porque não aposta e investe em programas e campanhas educativas e de sensibilização para mudar a cultura da mobilidade em Portugal? Este é precisamente um dos vários objectivos da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) 2020-2030, e um assunto em que a MUBi tem insistido. Certamente, também não ficaria mal aos nossos governantes darem eles próprios o exemplo, como acontece em muitos outros países.

Mas o ministro manchou o pano quando disse que o programa Portugal Ciclável 2030 (construção de ciclovias intermunicipais), com 300 milhões de euros de investimento previstos ao longo de dez anos, afinal poderá ser realizado com 130 milhões. Se na ENMAC 2020-2030 o Governo tem tentado fazer omeletes sem ovos, e esta está em risco iminente de falhar as metas intercalares para 2025, como a MUBi tem alertado, com o Portugal Ciclável 2030 o Governo parece agora querer espremer ovos da omelete. Ainda mais quando o Plano de Recuperação e Resiliência foi deixado vazio de mobilidade activa, o programa Portugal Ciclável 2030 deveria ser integrado na ENMAC e financiar também a criação de redes urbanas de percursos seguros para a utilização da bicicleta, como temos defendido.

A mudança do paradigma da mobilidade já há algum tempo entrou no discurso político em Portugal. Falta agora a acção política ter correspondência com o discurso. [Imagem: ECF]

Pressionar e exigir mais dos decisores políticos

A importância de a sociedade civil ser mais exigente e firme nas suas reivindicações com os decisores políticos foi algo bastante defendido na Velo-city 2021. Particularmente assertivas nesta matéria foram a vice-presidente da Associação Alemã de Ciclistas (ADFC, na sigla alemã) e a directora da União de Ciclistas da Holanda (Fietsersbond). A primeira, Rebecca Peters, disse que “temos de provocar os políticos, juntos somos fortes e juntos somos muitos”, tendo logo de seguida sido apoiada por Esther van Garderen, que recomendou que os activistas pela mobilidade em bicicleta adoptem um estilo mais confrontacional.

As organizações activistas devem ser mais firmes e exigentes com os decisores políticos, defenderam as responsáveis de duas das maiores organizações de utilizadores de bicicleta da Europa. [Imagem: ECF]

A MUBi na Velo-city

Tendo esta edição da Velo-city decorrido em Portugal, foi possível à MUBi participar com uma equipa de sete pessoas. Estivemos de modo quase permanente no stand disponibilizado pela Câmara de Lisboa, para conversar com quem quisesse vir falar connosco. Entregámos o Manifesto Cidades Vivas, nas versões em português e em inglês, a vários representantes de instituições portuguesas e europeias. Realizámos quase duas dezenas de entrevistas em vídeo, recolhendo testemunhos de pessoas com posições ou trabalho relevante na área da mobilidade activa, e que contamos começar a divulgar brevemente.

Assistimos a muitas apresentações, e também nós participamos em duas sessões. Na primeira delas, “COVID 19: Cycling Development & Advocacy During a Crisis”, apresentámos o trabalho que a MUBi realizou junto do poder central e das autarquias no início da pandemia. Conseguimos que as oficinas de bicicleta pudessem permanecer abertas no primeiro confinamento e, mais tarde, que fosse reposto o transporte de bicicletas nos comboios. Propusemos um plano de medidas de emergência para tornar a bicicleta uma aliada no pós-confinamento, que teve receptividade nula por parte do Governo, mas que foi bem aceite na Assembleia da República. Partidos e deputados representando 93% dos assentos no Parlamento avançaram com projectos neste sentido, e várias das propostas da MUBi vieram a integrar uma Resolução da Assembleia da República de recomendação ao Governo, incidindo sobre a aceleração da execução da ENMAC 2020-2030.

A nossa outra apresentação, “Unlocking Financial Incentives for E- and Cargo Bikes in Portugal”, foi sobre o trabalho que iniciámos em 2018 junto dos partidos na Assembleia da República. Com o apoio de outras organizações, conseguimos que, pela primeira vez em Portugal, fossem criados incentivos para a aquisição de bicicletas. Inicialmente, no Orçamento do Estado para 2019, apenas para bicicletas com assistência eléctrica, e depois estendidos a bicicletas de carga e convencionais. Criámos um guia de apoio às candidaturas, no primeiro ano, e temos com algum sucesso feito pressão para que as verbas disponíveis para bicicletas aumentem.

MUBi na Velo-city 2021

Nota final

Todos desejamos que Portugal evolua para acompanhar o que são as tendências do resto da Europa na área da mobilidade activa e qualidade do espaço urbano. Para isso, é preciso um grande esforço e investimento colectivo do Estado para levar a cabo, de forma decisiva e com benefícios ambientais e sociais inequívocos, uma profunda transformação da mobilidade urbana em Portugal. A bicicleta e os modos activos têm de passar a estar na agenda nacional e integrar seriamente os diversos instrumentos de políticas públicas. 

Esta é a mudança que queremos que aconteça também por cá. Esperamos que a realização da Velo-city 2021 em Portugal, e todo o conhecimento, experiências, instituições e pessoas a que tivemos acesso e com quem tivemos a oportunidade de aprender, possam constituir o empurrão que tanto precisamos nessa direcção.

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