No contexto da Estratégia Nacional para Mobilidade Activa Clicável 2020-2030, enviámos para o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) uma primeira reflexão sobre a necessidade de revisão do Código da Estrada e Regulamento de Sinalização do Trânsito.

Conceitos e metodologia 

O objectivo primário do Código da Estrada é a redução do risco de todos os utilizadores do espaço público. 

Antes de embarcarmos num processo de revisão do Código da Estrada é extremamente importante alinharmos princípios fundamentais.

Não há segurança sem mobilidade sustentável, nem mobilidade sustentável sem segurança. Por isso, todo o sistema legislativo não deve contradizer objectivos estratégicos da política de mobilidade em Portugal. Todas as leis e regulamentos devem, sim, contribuir para que estes objectivos sejam atingidos.

Por isso, é importante compreender que a revisão das leis e portarias que regem a mobilidade no território deverá estar a ser objecto de constante revisão. Tal é cada vez mais importante, tendo em conta a constante aceleração do progresso tecnológico e a necessidade de alinhar as políticas de mobilidade com a segurança no uso do espaço público. Será, por isso, contra-producente manter ou criar regras que desencorajem o uso dos modos desejáveis (a pé ou em bicicleta). 

A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) é responsável ou entidade envolvida na execução de cerca de 1/5 das medidas da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) 2020-2030, incluindo a revisão e aperfeiçoamento do Código da Estrada (CE) e do Regulamento de Sinalização do Trânsito (RST). Por isso, tem um papel e responsabilidade preponderantes na prossecução das metas intercalares e finais da ENMAC, nomeadamente de redução de sinistralidade envolvendo ciclistas e de aumento da quota modal do uso da bicicleta à custa da redução do uso do automóvel particular, e também das metas da Estratégia Pedonal (ENMAP 2030).

É de assinalar também que, apesar das revisões muito positivas introduzidas em 2014, a questão principal continua a ser a falta de fiscalização no que diz respeito à proteção dos “utilizadores vulneráveis” – estes continuam a sentir que muitas destas regras não são respeitadas nem o seu incumprimento punido com a necessária regularidade – e o cumprimento dos limites de velocidades (principalmente em zonas urbanas).

Neste sentido, propomos três fases de trabalho:

0 – Diagnóstico: Levantamento estatístico das coimas anuais pelo incumprimento das regras introduzidas em 2014.

1 – Proposta de curto-prazo: correção e actualização, a curto prazo, do Código da Estrada

2 – Proposta de médio-longo prazo: revisão profunda do Código da Estrada para que inclua regras de conduta Cidadania Rodoviária e Mobilidade Sustentável.

A MUBi já está a trabalhar propostas concretas para fase 1, mas gostaríamos de antes demais solicitar estatísticas desde 2014, desagregadas por ano (e se possível geograficamente), das coimas por incumprimento dos seguintes artigos:

Artigo 18.º
Distância entre veículos
#3

Artigo 38.º
Realização da manobra.
#2 e)
#3 (quando o veículo ultrapassado é um velocípede)

Artigo 49.º
Proibição de paragem ou estacionamento
#3

Artigo 78.º-A
Zonas de coexistência
#1, #2, #3

Artigo 90.º
Regras de condução
#1, #2, #3

Artigo 91.º
Transporte de passageiros
#2, #3

Artigo 103.º
Cuidados a observar pelos condutores
#1, #2, #3

Principais preocupações 

Em relação à fase 1 são estas as nossas principais preocupações:

Terminologia

Alguma terminologia, usada no CE e RST, deveria ser mais cuidada e melhorada, ora já na fase 1 ou na fase 2.

“Utilizadores Vulneráveis” (peões e pessoas em bicicletas) seria mais correcto chamar-lhes “Utilizadores Mais Vulneráveis”, ou melhor ainda, “Utilizadores Mais Desprotegidos”. Nesta definição, em vez de incluir “velocípedes”, o correcto será “pessoas em velocípedes”.

Eliminar a palavra “acidente” do CE, tal como aconselhado por inúmeras instituiçōes, inclusivamente a Organização Mundial de Saúde. 

Posição de Marcha de Velocípedes

Continua a ser obrigatório que os velocípedes “devem transitar pelo lado direito da via de trânsito” e facultar a ultrapassagem “desviando-se o mais para a direita possível”. Não sendo coerente com a necessidade de segurança de circulação de velocípedes e a obrigatoriedade da ultrapassagem de veículos ter que ser realizada ocupando a via adjacente.

Ultrapassagens

Apesar da definição de via de trânsito – Artigo 1.º – Definições legais) «Via de trânsito» – zona longitudinal da faixa de rodagem destinada à circulação de uma única fila de veículos; – continuam a subsistir interpretações erradas relativamente à obrigatoriedade do veículo que ultrapassa a ocupar totalmente a via adjacente, na ultrapassagem de qualquer veículo, inclusivamente uma bicicleta.

Limites de velocidades

Em 2017, os Ministros de Transportes da União Europeia assinaram a Declaração de Valeta, que inclui o objetivo de reduzir a zero o número de mortes nas estradas europeias. Como consequência a Comissão Europeia e o próprio Estado Português adotaram a “Visão Zero”: todas as mortes na estrada são eticamente inaceitáveis. A promoção da segurança rodoviária só é eficaz quando assenta num pressuposto básico da ”Visão Zero”: errar é humano. Temos, por isso, de garantir que os erros que inevitavelmente serão cometidos, não sejam erros mortais. O primeiro passo é reduzir a velocidade.

Em 2020, Portugal assinou a Declaração de Estocolmo. Nela se estabeleceu claramente que os Estados signatários deverão priorizar a gestão da velocidade como uma intervenção chave de segurança rodoviária, em particular para “fortalecer a aplicação da lei, para prevenir o excesso de velocidade e determinar uma velocidade máxima de 30 km/h conforme apropriado nas áreas onde utilizadores vulneráveis e veículos se misturam … ”. A Declaração de Estocolmo enfatiza ainda que os esforços para reduzir a velocidade têm um impacto benéfico na qualidade do ar e nas alterações climáticas – não haverá mobilidade sustentável sem segurança, nem segurança sem mobilidade sustentável.

Em maio de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) patrocinou a 6ª Semana Global de Segurança no Trânsito da ONU, a destacar os benefícios de ruas de baixa velocidade em áreas urbanas e apelando aos países a limitar as velocidades a 30 km/h nas ruas partilhadas entre peões, utilizadores/as de bicicleta e o tráfego motorizado. A OMS, baseada em inúmeros estudos epidemiológicos, é muito clara: o risco de morte e ferimentos reduz consideravelmente quando as velocidades praticadas são abaixo dos 30 km/h.

O Parlamento Europeu, em outubro de 2021, aprovou – com 90% de votos a favor – a recomendação da adoção de uma velocidade máxima de 30 km/h “em zonas residenciais e com um elevado número de peões e utilizadores de bicicleta”, argumentando que o excesso de velocidade é um fator determinante em cerca de 30% dos sinistros rodoviários mortais.

Por isso Portugal terá que cumprir a Declaração de Estocolmo, as recomendações da OMS e do Parlamento Europeu e altere o limite máximo de velocidade de 50 km/h para 30 km/h em áreas urbanas, onde o tráfego motorizado interage com peões e utilizadores/as de bicicleta (definido no Código da Estrada como “dentro das localidades” com a excepção de “vias reservadas a automóveis e motociclos”).

Regras e penalizações que protejam efetivamente os utilizadores vulneráveis

Para que a desejada alteração ao Código da Estrada, pelo reconhecimento da existência de utilizadores vulneráveis (peões e ciclistas) e do dever de especial cuidado dos utilizadores de veículos potencialmente perigosos, se concretize numa melhoria efetiva da segurança dos utilizadores vulneráveis da via pública é também necessário que seja revisto o regime de contraordenações, de forma a que este incorpore, na prática, o dever de cuidado perante os utilizadores vulneráveis;

Essa revisão deve incidir, nomeadamente, no agravamento das consequências do excesso de velocidade em meio urbano, no desrespeito pelas distâncias de segurança para com os utilizadores vulneráveis, no desrespeito das passagens de atravessamento (passagens para peões e passagens para velocípedes), no desrespeito das regras de prioridade perante utilizadores vulneráveis e no estacionamento abusivo nos passeios, áreas urbanas pedonais e percursos para velocípedes.

Circulação de ciclistas em grupo

Faz todo o sentido existirem regras excepcionais, no Código da Estrada, para a proteção de ciclistas que circulam em grupo, a exemplo de Espanha. Este tipo de regras deverão também proteger os “comboios” de bicicletas (promovidos por algumas autarquias e que também a Direcção Geral da Educação pretende impulsionar), como unidades móveis únicas. Além da medida em si, este é um bom exemplo de que a ANSR precisa de estar atenta às transformações na sociedade, para continuamente adaptar e melhorar o CE.

Circulação de ciclistas a par

Não faz sentido que a circulação de ciclistas paralelamente numa via esteja condicionada pela visibilidade da via, intensidade de trânsito e por poder causar embaraço ao trânsito. Para além de estes serem conceitos extremamente subjectivos, nunca a segurança das pessoas, como por exemplo no caso de um adulto acompanhar uma criança de bicicleta, deve ser colocada a seguir à fluidez do trânsito.

Acresce que a circulação a par torna os ciclistas mais visíveis que em fila. Sendo que para a realização da manobra de ultrapassagem é obrigatório ocupar a via adjacente, a circulação a par não causa mais embaraço ao trânsito que a circulação em fila. Pelo contrário, a circulação de ciclistas a par facilita a manobra de ultrapassagem,  pois faz com que a distância de ultrapassagem seja mais curta.

Regulamento de Sinalização do Trânsito 

Face à publicação em Diário da República do Decreto Regulamentar n.º 6/2019 que alterou o Regulamento de Sinalização do Trânsito (RST), a MUBi saudou na altura da sua publicação, o Governo por finalmente ter procedido à actualização do RST com elementos que consideramos ser de extrema importância.

Lamentamos, por exemplo, a oportunidade perdida para a harmonização do RST com o Código da Estrada, no que respeita à utilização de “pista reservada a velocípedes”. 

O RST manteve a desconformidade com o respetivo diploma que visa regulamentar, visto que se estabelece, desde 2013, que a utilização das «pistas especiais» (artigo 78.º do CE) é preferencial e não obrigatória. Ora, o RST mantém, em incongruência, um único sinal para a sua identificação, o D7a, com significado de obrigatoriedade.

O RST poderá, por isso, incluir um sinal informativo quadrado tal como existe em vários países europeus.

Ou alterar a descrição do D7a para “via reservada” a exemplo dos D6 para o Transporte Público. 

Na última revisão houve também parca ambição na criação de sinalética que permita a adopção de medidas de enorme impacto para a promoção da utilização da bicicleta como meio de transporte, como sejam as vias de duplo sentido ciclável, a sinalética que permita ao condutor de velocípede tomar a semaforização luminosa de paragem como cedências de passagem, mediante estritas condições de segurança, à semelhança do que acontece, por exemplo, em vários municípios franceses, ou a sinalética de ruas sem saída, excepto para os modos activos de deslocação.

Comments are closed.