Políticas de investimento que promovam uma utilização segura da bicicleta e do andar a pé têm um papel crucial para a saúde pública, na mitigação das alterações climáticas e na melhoria do ambiente e qualidade de vida nas cidades. A bicicleta é um modo de transporte inclusivo, incontornável para uma transição ecológica e energética justa. Contudo, a bicicleta tem sido relegada para um lugar residual nas políticas governamentais de mobilidade em Portugal. A pretexto do Dia Mundial da Bicicleta, a MUBi apela a uma efetiva liderança política e investimento do Estado na criação de condições para usar a bicicleta idênticas às que existem noutros locais da Europa.

Kidical Mass em Lisboa, 7 maio 2023. Foto: Laura Alves | MUBi.

A Organização das Nações Unidas decretou o dia 3 de junho como o Dia Mundial da Bicicleta, pelos amplos benefícios sociais, económicos e ambientais decorrentes da utilização deste modo de transporte[1].

O uso dos modos activos de transporte, como a bicicleta e o caminhar, gera enormes benefícios em termos de saúde pública, contribuindo também para desonerar o sistema nacional de saúde. Fazer deslocações de bicicleta 20 minutos por dia reduz o risco de mortalidade em mais de 10%, o risco de doenças cardiovasculares em 10%, o risco de diabetes tipo-2 em 30% e o risco de cancro em 30%, segundo a Organização Mundial da Saúde[2]. Estas evidências são particularmente importantes em Portugal, que tem dos mais elevados índices da Europa de inactividade física e obesidade entre a população mais jovem. 

Pelo seu baixo custo, a bicicleta é um meio de transporte inclusivo, podendo oferecer condições semelhantes de acessibilidade a empregos e serviços a todas as pessoas, independentemente da sua situação socioeconómica. Pelo contrário, a elevada dependência do automóvel em Portugal, constitui um elevado encargo financeiro para muitas famílias, em particular aquelas com menores recursos económicos. A falta de alternativas ao uso do carro constitui um factor acentuador de desigualdades sociais e de acesso a oportunidades.

As emissões dos transportes em Portugal, predominantemente com origem no transporte rodoviário, crescem continuamente há uma década e representavam em 2021 mais de 28% das emissões do país[3]. O tráfego rodoviário é, ainda, o principal responsável pela poluição do ar nas cidades, que provoca a morte prematura de cerca de seis mil pessoas cada ano em Portugal.

Metade das viagens nas cidades são inferiores a 5 km e 30% inferiores a 3 km. Muitas destas poderiam ser feitas de bicicleta, ou até a pé, se existirem condições de conforto e segurança para o uso destes modos de transporte. Uma transferência significativa do uso do carro para os modos activos poderia ajudar a diminuir muitos dos actuais problemas dos sistemas de mobilidade – incluindo emissões de poluentes do ar e de gases com efeito de estufa, ruído, congestionamentos de trânsito, sinistralidade rodoviária, ocupação do espaço público e oportunidade limitada de actividade física.

Para além disso, a bicicleta cria e mantém empregos. A indústria portuguesa da bicicleta é um sector especializado e em crescimento. Em 2022, Portugal produziu mais de três milhões de bicicletas, mais do que qualquer outro país europeu. O valor total de exportações aumentou 37% em comparação com 2021, ultrapassando os 800 milhões de euros[4].

A Federação Europeia de Ciclistas, da qual a MUBi é membro, avaliou em mais de 150 mil milhões de euros os benefícios sócio-económicos anuais da utilização da bicicleta na Europa[5]. Destes, mais de 90 mil milhões representam externalidades positivas na saúde, no ambiente e nos sistemas de mobilidade. 

Por estas razões, muitos países europeus estão a investir significativamente na promoção da mobilidade em bicicleta, em detrimento do automóvel. Na República da Irlanda, com metade da população portuguesa, o Governo decidiu investir 360 milhões de euros por ano (1 milhão por dia) nos modos activos[6]. Em França, o Governo anunciou recentemente que vai investir dois mil milhões de euros até 2027, num total de seis mil milhões, contando com os investimentos das autoridades locais e regionais, para impulsionar o uso da bicicleta no país[7].

Em Fevereiro passado, o Parlamento Europeu adoptou uma resolução com o objectivo de duplicar a utilização da bicicleta na Europa até 2030[8].

Em 2019, suscitando grande expectativa, o Governo lançou a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) 2020-2030. Até 2030, 7,5% das viagens no território nacional, e 10% nas cidades, deverão ser feitas em bicicleta. Contudo, prestes a entrar no quinto ano de implementação, a ENMAC continua sem liderança política, sem recursos, sem articulação entre áreas governativas e com a administração local e sem ter ainda as medidas calendarizadas e orçamentadas.

Com apenas 30 cêntimos per capita por ano, o Governo português é o que menos tem investido na utilização da bicicleta em toda a Europa. O anterior programa de fundos comunitários – Portugal 2020 – foi também um fiasco na promoção dos modos activos, como mostram os resultados dos Censos 2021. As pessoas em Portugal não têm, nem de perto nem de longe, as condições existentes em outros locais da Europa para poderem usar a bicicleta nas deslocações quotidianas.

O andar a pé e a utilização da bicicleta têm de ter um lugar prioritário nas políticas de mobilidade. Aliás, isso mesmo é reconhecido pela Comissão Europeia, pelo Parlamento Europeu e inclusivamente o Parlamento Português aprovou, com uma expressiva maioria de mais de 90% de votos favoráveis, a recomendação ao Governo que reforce a equipa de coordenação e aumente substancialmente os meios financeiros alocados à implementação da ENMAC 2020-2030[9].

Para Portugal poder alcançar as metas de mobilidade sustentável e de descarbonização dos transportes nesta década são necessárias medidas disruptivas e transversais. Promover os modos activos de deslocação requer investimentos relativamente baixos e rápidos de concretizar, com amplo retorno social, económico e ambiental. A MUBi defende que o Estado deverá investir pelo menos 200 milhões de euros por ano na promoção do uso da bicicleta (equivalente ao investimento per capita em França), começando já no próximo Orçamento do Estado. Outro tanto deverá ser investido na promoção da mobilidade pedonal. Estes valores correspondem a uma pequena parcela dos mais de mil milhões de euros que anualmente o Estado gasta nas parcerias público-privadas rodoviárias, ou dos perto de dois mil milhões de euros que teve de perda de receitas fiscal no último ano com a suspensão e redução de taxas e impostos sobre os combustíveis fósseis rodoviários, por exemplo.

O tempo urge. Não é a altura de meias medidas, sem convicção. Precisamos de mais acções consequentes e menos palavras, mas principalmente de liderança política. A MUBi considera que são particularmente prioritários e urgentes os seguintes investimentos

  1. Dotar a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável 2020-2030 e a Estratégia Pedonal (ENMAP 2030) de recursos humanos, técnicos e financeiros necessários para a sua coordenação e implementação das medidas.
  2. Apoio técnico e financeiro aos municípios para a criação de condições de conforto e segurança para a utilização da bicicleta, e andar a pé. A adopção do limite máximo de velocidade padrão de 30 km/h dentro das localidades[10] deverá ser acompanhada pela implementação de medidas físicas de acalmia de tráfego, especialmente nas envolventes de escolas, zonas residenciais, centros urbanos e outros locais onde os utilizadores vulneráveis convivam com veículos motorizados. Deverá, igualmente, ser apoiada a criação de redes de percursos seguros para a utilização da bicicleta (redes cicláveis), respeitando as melhores práticas internacionais, redistribuindo o espaço viário nas artérias urbanas e interurbanas e articulando com grandes equipamentos e interfaces de transporte público.
  3. Amplo programa de contratação e formação de recursos humanos na área da mobilidade activa – incluindo projecto e construção de infraestruturas, comunicação, educação, etc. –  nos organismos do Estado, incluindo autarquias.
  4. Alargamento do ensino da utilização da bicicleta em contexto de mobilidade a todos os alunos do 1.º e 2.º ciclo. São também necessárias campanhas de âmbito nacional, dirigidas a toda a população, de alteração da cultura da mobilidade e promoção dos modos activos de transporte.

Vera Diogo, presidente da MUBi, acrescenta que “a MUBi continuará a trabalhar com as forças políticas e instituições públicas, pressionando para esta urgência. Continuaremos, também, a sensibilizar e mobilizar as comunidades para os importantes e múltiplos benefícios dos modos activos. O Dia Mundial da Bicicleta é uma concretização desta consciência e da necessidade da sua ampliação. O que nos faz bem à saúde e à saúde do planeta deve ser celebrado todos os dias.

Referências:

[1] United Nations, World Bicycle Day 3 June.
[2] World Health Organization – Regional Office for Europe (2022), Walking and cycling: latest evidence to support policy-making and practice.
[3] Agência Portuguesa do Ambiente (2023), Inventário Nacional de Emissões 2023.
[4] “Exportações de bicicletas vão ultrapassar barreira dos 800 milhões”, Dinheiro Vivo, 16 de janeiro de 2023.
[5] European Cyclists’ Federation (2018), The benefits of cycling: Unlocking their potential for Europe.
[6] Government of Ireland, Programme for Government: Our Shared Future.
[7] “Plan vélo : le gouvernement annonce un investissement de 2 milliards d’euros d’ici à 2027”, Le Monde, 5 de maio de 2023.
[8] Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2023, sobre o desenvolvimento de uma estratégia da UE para a utilização da bicicleta.
[9] MUBi (2023), Parlamento quer recursos humanos e financeiros para implementação da ENMAC 2020-2030.
[10] Tal como recomenda a Declaração de Estocolmo assinada por Portugal em 2020.
Carta Aberta “Cidades Seguras para todas as Pessoas”.

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