A Semana Europeia da Mobilidade concentra uma panóplia de actividades e eventos bem-intencionados que, no final, não derrubam as barreiras a uma mudança de paradigma na mobilidade. Lideramos na produção de bicicletas mas tardamos demasiado em dar o salto do automóvel privado para os modos activos e sustentáveis.

A Semana Europeia da Mobilidade (SEM) é uma iniciativa da Comissão Europeia (CE) que acontece desde 2002. Nesse ano, tal como tem sucedido nos últimos anos por todo o mundo, ocorreram graves catástrofes naturais na Europa que motivaram à acção pela preservação do equilíbrio ambiental. Sendo os transportes o sector que mais contribui para as emissões de gases carbónicos, a CE apostou em promover a mudança de hábitos de mobilidade decretando a celebração do Dia Sem Carros, a 22 de Setembro, no seguimento do que já vinha a ser reclamado nos Domingos Sem Carros, em cidades italianas e francesas.

Com esta base histórica, a MUBi considera que a SEM deve ser uma altura em que se divulgam mais as acções contínuas e consequentes de activação da Mobilidade que os municípios e outras organizações levam a cabo durante todo o ano; em que, eventualmente, se inauguram novas medidas permanentes; e uma oportunidade para gerar debate sobre as visões  de cidade — passadas, presentes e futuras — que influenciam os padrões de mobilidade, envolvendo de modo inclusivo as populações e as organizações activas nos vários concelhos do país. 

Há 23 anos, por ocasião do  primeiro Dia Mundial sem Carros, as autarquias aderiram com entusiasmo, até porventura de forma um pouco pueril e pouco consequente — Aveiro, Évora, Leiria, Lisboa e Porto fecharam os seus centros ao trânsito de automóveis privados. A este primeiro entusiasmo inicial seguiu-se uma fase em que tudo encalhou, e passou-se a celebrar Dias sem Carros em pequenas ruas, feiras tímidas em recantos pouco convictos. Mas enquanto em Portugal organizávamos momentos de mobilidade activa divertida, com dia e hora marcada, corridas de karts, mostras de carros elétricos e trotinetes, distribuíamos folhetos com palavras bonitas e boas intenções, o mundo não parou — a cidade de Bogotá abre as ruas às pessoas todos os domingos com a participação de cerca de 1 milhão de pessoas a caminhar e a pedalar; Bruxelas abre às pessoas todas as ruas por ocasião da Semana Europeia da Mobilidade, abrangendo uma região com 1,2 milhões de residentes. 

A Semana da Mobilidade ou o Dia sem Carros devem ser a consequência de políticas corajosas para tornar as nossas cidades mais seguras, mais saudáveis, mais limpas e mais calmas, ao longo de todo o ano. Não pode ser uma feira da mobilidade com eventos inconsequentes — sob pena de se tornar uma “feira de vaidades” fechada em si mesma, com pouca ou nenhuma expressão na construção de cidades e vilas mais humanas onde a mobilidade activa deve ser uma opção ao alcance de todas as pessoas, de todas as idades. Deve igualmente cumprir o seu propósito de abrir discussão pública sobre a temática da mobilidade urbana, tendo em conta a centralidade que esta ocupa nas nossas vidas, na relação da espécie humana com o planeta e na estrutura socioeconómica em que nos enquadramos.

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Perpetuar padrões de mobilidade insustentável não é proteger as famílias

Não levar a sério este momento simbólico e oportunidade de mudança de paradigma que a SEM constitui é seriamente preocupante quando, em Portugal, o sector dos transportes é responsável por 28% das emissões de gases com efeito de estufa, tendência que tem vindo a aumentar desde 2013. O transporte rodoviário é responsável por mais de 95% destas emissões e, paradoxalmente, em vez de desinvestir nele, o Governo destinou perto de mil milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) à construção de estradas, continua a apoiar o consumo de combustíveis fósseis rodoviários, afirmando inclusive poder vir a aumentar esse apoio face às últimas subidas de preços, com o intuito de “proteger as famílias”! Como é que a perpetuação de um padrão de mobilidade insustentável pode ser encarado por responsáveis políticos como uma medida de protecção?

A MUBi defende que proteger as famílias é planear o espaço público de modo participado, priorizando a mobilidade activa e o transporte público, apostando seriamente na sua complementaridade e desincentivando o transporte motorizado individual. A dependência do automóvel tem gerado graves crises, não só no equilíbrio ambiental como na saúde pública e nas formas de vivência do espaço urbano, particularmente dos espaços de residência. Numa sociedade mecanizada, em que as prioridades estão trocadas, alocamos mais espaço aos automóveis do que às pessoas — com nefastas consequências para o bem-estar físico e mental. 

Estima-se que cerca de 70 a 80% do espaço público urbano é ocupado por automóveis, incluindo ruas e áreas de estacionamento, sendo o estacionamento ilegal uma constante nas nossas cidades. Esta usurpação do espaço público, combinada com a velocidade de circulação excessiva, dificulta, quando não impossibilita, a fruição das áreas de residência. Proteger as famílias seria reduzir para 30 km/h o limite de velocidade nas localidades, conforme recomenda a OMS, criando medidas físicas de acalmia de tráfego. Proteger as famílias seria pedonalizar os centros urbanos e partes significativas das áreas de residência, limitando também o acesso de automóveis às áreas escolares

Pelo contrário, ano após ano, vemos o investimento na mobilidade sustentável e nos modos activos relegado para segundo plano — com a Semana Europeia da Mobilidade a servir para limpar consciências, concentrando em poucos dias um arrastão de atividades muitas vezes avulso, pouco sérias e sem tradução expectável numa mudança de comportamentos por parte de quem se desloca maioritariamente de automóvel. Ao mesmo tempo que mais uma vez Portugal lidera na produção de bicicletas, embatemos diariamente numa realidade em que, por falta de investimento e criação de infraestrutura adequada, continuamos muito aquém da meta para 2030 de 10% das viagens em meio urbano a serem realizadas em bicicleta.

Vera Diogo, presidente da MUBi, lembra que “o Plano Nacional Energia e Clima afirma o compromisso de Portugal reduzir em pelo menos 40% as emissões do sector dos transportes, até 2030.

E questiona: “É sabido o que é necessário e urgente fazer. Resta saber o que será preciso para levar os decisores políticos a agir. Será preciso que o ar se torne irrespirável? Que o espaço público se torne tão exíguo e inseguro que os conflitos aumentem? Que as doenças físicas e mentais atinjam níveis ainda mais preocupantes? A MUBi age para contrariar esse cenário. Terão os governantes a consciência tranquila?”

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