A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) encontra-se a desenvolver o “Plano Estratégico de Segurança Rodoviária 2021-2030 – Visão Zero 2030”. Em sequência do convite e solicitação pública de contributos até 6 de Novembro, para, numa primeira fase, serem definidas as linhas orientadoras da nova estratégia, enviámos nessa data à ANSR os comentários e recomendações que se seguem.

Contributo e recomendações da MUBi para o “Plano Estratégico de Segurança Rodoviária 2021-2030 – Visão Zero 2030”, em desenvolvimento pela ANSR

A MUBi congratula-se que Portugal assuma finalmente uma visão de zero mortos e feridos grave[1] nas ruas e estradas portuguesas, reconhecendo este Plano como um instrumento de extrema importância para se alcançar esse objetivo até 2030.

Em Junho de 2017, o Conselho de Ministros aprovou o Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária – PENSE 2020. Quando chegamos ao final do seu período de vigência, consideramos que deverá ser claramente assumido por todos que o PENSE 2020 falhou, ficando muito longe de alcançar as metas definidas. O Plano Estratégico 2021-2030, agora em desenvolvimento, deverá fazer um diagnóstico explícito das razões porque a anterior estratégia falhou.

O combate à sinistralidade rodoviária e o novo Plano Estratégico 2021-2030 deverão assumir uma visão holística, assente numa estratégia abrangente de saúde pública, e ligando a segurança rodoviária à mobilidade sustentável e à qualidade de vida. Deverão ser baseados num paradigma de segurança rodoviária orientado para a redução do perigo através da redução do risco na sua fonte: o uso irresponsável de veículos motorizados particulares (pela sua utilização excessiva e por comportamentos de risco nessa utilização).

O Plano deverá, também, fazer a ligação com as políticas de ordenamento do território e de urbanismo e ter em conta os compromissos ambientais e climáticos de Portugal e da União Europeia e os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

Deverá incorporar de forma explícita a necessidade urgente de encorajar os modos de transporte mais sustentáveis e acabar com a aceitação da dependência do uso excessivo do automóvel como uma inevitabilidade. O Plano deverá incorporar objectivos de uma profunda reformatação do sistema de mobilidade urbana e a reorganização e replaneamento das cidades ao longo da próxima década[2], desencorajando e reduzindo a necessidade do uso do automóvel, e conter metas de redução do uso do transporte motorizado individual e transferência para os modos mais saudáveis, seguros e sustentáveis.

O Plano deverá procurar um compromisso político alargado

Deverá ser claramente assumido e plenamente interiorizado o princípio de hierarquia de responsabilidades, e que os veículos motorizados são a fonte do risco e os causadores principais do perigo rodoviário. Ao contrário dos velocípedes e dos peões, estes circulam a velocidades elevadas e possuem uma grande massa, pelo que têm um poder destrutivo muito mais elevado. Por isso, a responsabilidade do seu uso pode ser equiparado ao do uso uma arma: por princípio, não devem ser as potenciais vítimas de caçadores a ser responsabilizadas pelos sinistros, mas sim os detentores das armas potencialmente letais. Em consequência, o foco de educação, sensibilização e fiscalização deve ser colocado nos utilizadores dos veículos fonte de maior risco e causadores do perigo, e não nas vítimas destes.

Assim, qualquer novo plano estratégico de segurança rodoviária deverá sempre levar em conta que i) existem utilizadores vulneráveis, ii) deve ser incentivada a mobilidade a pé e em bicicleta e, muito importante, iii) a segurança de quem opta por esses modos depende especialmente do comportamento dos condutores de veículos motorizados.

Em virtude das limitações e falhas humanas, é essencial que a infraestrutura influencie e condicione os comportamentos humanos, em particular os dos utilizadores de veículos perigosos, de forma a garantir a diminuição do risco e comportamentos que respeitem a segurança. Deve ser um pilar crucial da melhoria da segurança a adaptação das infraestruturas de modo a reduzirem situações de risco, sobretudo com a criação de medidas de acalmia e redução do tráfego motorizado em meio urbano, tal como tem sido a tendência há décadas nos países europeus mais civilizados. Este Plano deve abordar a criação e revisão de legislação e normativas técnicas, e a promoção e fiscalização da sua implementação, que conduzam a infraestruturas rodoviárias mais seguras, especialmente para os utilizadores vulneráveis

O princípio da “segurança pelos números”[3, 4] comprova que quanto maior for a utilização da bicicleta (ou do andar a pé), para além dos significativos ganhos sociais, ambientais e económicos, substancialmente maior será a segurança relativa da sua utilização. Assim, uma das formas de alcançar esta Visão será fomentar o uso dos modos activos de deslocação em alternativa ao uso do automóvel. É então, também por isto, imperativo que a definição deste Plano tenha em conta a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030 (ENMAC 2020-2030)[5] e a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Pedonal (ENMAP) – cuja proposta se encontra ainda em desenvolvimento – e integre e contribua directamente para os objectivos e metas nelas estabelecidos. Em particular, que a utilização da bicicleta no território nacional deverá convergir para a utilização média na Europa e, até 2030, pelo menos 10% das viagens nas cidades portuguesas sejam feitas em bicicleta, devendo estas metas resultar directamente da redução da utilização do transporte automóvel privado. A ANSR é uma das cinco entidades que constituem a Rede de Pontos Focais, a quem o Governo incumbiu de assegurar a coordenação da ENMAC 2020-2030 e de dinamizar e acompanhar a execução das suas medidas. A ANSR é, ainda, entidade responsável ou envolvida na execução de 11 das 51 medidas da ENMAC 2020-2030.

De modo a abordar seriamente o princípio ético de que os utilizadores de objectos potencialmente perigosos e causadores de danos graves devem assumir a responsabilidade automática por esse facto, e de acordo com o espírito do Art.º 503 do Código Civil português e da Diretiva 2009/103/CE e da sua transposição portuguesa, e em linha com a aplicação em países mais civilizados em matéria de segurança rodoviária e proteção dos vulneráveis, este Plano Estratégico deverá considerar o estudo da introdução mais eficaz do Princípio da Responsabilidade Objectiva[6], nomeadamente a nível do direito dos seguros, de modo a que os utilizadores vulneráveis, designadamente os ciclistas,  vítimas em caso de desastre com condutores de veículos a motor, sejam indemnizados automaticamente pelos seguros dos detentores desses objetos potenciadores de perigo (que são sobretudo automóveis), à semelhança da lei francesa conhecida como Lei Badinter[7]

Um desastre não é um acidente, dado que um acidente, na sua natureza, se prende com uma eventualidade não controlada[8, 9]. Sugerimos assim que a terminologia “acidente”, para se referir a um sinistro/colisão/desastre, seja definitivamente abandonada neste Plano e em todos os novos documentos e outros materiais de informação e comunicação da ANSR. Consideramos ser um conceito que deve ser alterado no léxico dos responsáveis sobre temas de segurança rodoviária para que estes deixem de menosprezar a gravidade das consequências para os utilizadores vulneráveis, no sentido de contribuir para a alteração da perspectiva instaurada na sociedade de desresponsabilização da violência da sinistralidade rodoviária.

Infelizmente, ainda verificamos que a ANSR, nos seus relatórios de sinistralidade, não publica estatísticas das acções de fiscalização e seus resultados, restringindo a sociedade civil de avaliar o desempenho das autoridades competentes. Na perspectiva da cidadania participativa, com o escrutínio como objetivo, consideramos de extrema importância que estas estatísticas sejam publicadas periodicamente e de acesso fácil à sociedade.

Paralelamente, parece-nos essencial recolher e disponibilizar publicamente estatísticas detalhadas dos sinistros, indicando claramente a sua causa

Deverão, ainda, ser incorporados e recolhidos novos indicadores de risco rodoviário e exposição ao risco, como sinistros por km e por tempo, para cada modo de transporte, e também indicadores de percepção do risco rodoviário.

A velocidade excessiva é um dos principais factores associados a desastres rodoviários com consequências graves e fatais. Portugal tem dos piores índices da Europa de sinistralidade rodoviária dentro das localidades. O desenvolvimento deste Plano deve propor a redução do limite máximo de velocidade dentro das localidades para 30 km/h.

De acordo com os dados conhecidos pela MUBi, terão ocorrido um número ínfimo de autuações em todo o país pelo incumprimento da distância mínima de segurança de ultrapassagem a utilizadores vulneráveis, uma regra básica cujo cumprimento evitaria as diversas mortes e ferimentos graves que todos os dias ocorrem sobre peões e utilizadores de bicicleta decorrentes desta infração. Portugal continua a ser dos países com menor fiscalização sobre o incumprimento das regras do Código da Estrada, em particular da velocidade excessiva praticada em estradas nacionais e em zonas urbanas, factor associado à vasta maioria dos sinistros com consequências graves.

Em sequência da Petição “Pelo Direito a Pedalar em Segurança”[10, 11], que contou com aproximadamente dez mil subscritores, a Assembleia da República deliberou por unanimidade recomendar ao Governo a adopção de medidas de redução do risco rodoviário sobre os utilizadores vulneráveis[12]. Entre elas,

  • a criação de um grupo de trabalho interministerial para lançar e coordenar a implementação de medidas com este fim,
  • o reforço das acções de educação e sensibilização para a cidadania rodoviária e proteção dos utilizadores mais vulneráveis,
  • a intensificação da fiscalização rodoviária de comportamentos perigosos em relação aos utilizadores vulneráveis, e
  • a colaboração com os municípios para a criação de mais zonas de velocidades reduzidas nas cidades portuguesas.

É com lamento que constatamos que, decorrido mais de um ano e meio, todas estas deliberações continuam essencialmente por implementar. A ANSR, no âmbito das suas competências, e em específico através deste Plano Estratégico, deverá dar resposta cabal a estas solicitações dos representantes dos portugueses no Parlamento nacional.

A elaboração, execução e monitorização de Planos Municipais de Segurança Rodoviária, em concordância com os princípios atrás elencados, deverão ser tornadas obrigatórias, devendo ser criadas as condições para que isso aconteça.

Consideramos, ainda, que o Plano deverá estudar e propor a revisão e actualização de legislação e regulamentação relevantes. Em particular no que respeita ao Código da Estrada, apesar dos progressos consideráveis que constituiu a revisão em 2014, a sua revisão e actualização deveria ser um trabalho constante de forma a introduzir novas formas de mobilidade e mais consentâneas com a sociedade que todos desejamos. O atual Código da Estrada teve a sua origem no pináculo do paradigma do automóvel e quando a grande necessidade era a regulação do tráfego intra-urbano e ainda uma elevada proporção da população portuguesa não vivia em zonas urbanas. É por isso fundamental alterar a sua raíz introduzindo um conjunto de regras mais consentâneas com a regulação do tráfego urbano, proteção dos modos activos e regulamentar novas formas de mobilidade. Esta revisão deverá ser acompanhada por uma equipa transdisciplinar e com a consulta regular da sociedade civil.

O currículo de formação dos auditores de segurança rodoviária deve passar a incluir aspectos relacionados com os utilizadores vulneráveis e a infraestrutura para estes utilizadores.

Este Plano deverá, também, incluir medidas de formação de técnicos de autarquias, institutos públicos e outros organismos do Estado nas áreas de cidadania rodoviária e mobilidade activa, inclusiva e sustentável.

Por fim, o Plano deverá apresentar e integrar um plano financeiro da implementação da estratégia e execução das medidas e acções que preveja.

[1] Estrada Viva, Visão Zero.
[2] Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030. Eixo Estratégico 9 – Um Novo Paradigma para as Cidades e a Mobilidade.
[3] European Cyclists’ Federation, ECF fact sheet – Safety in numbers.
[4] P. L. Jacobsen (2003)), Safety in numbers: more walkers and bicyclists, safer walking and bicycling, Injury Prevention 9(3).
«Conclusion: A motorist is less likely to collide with a person walking and bicycling if more people walk or bicycle. Policies that increase the numbers of people walking and bicycling appear to be an effective route to improving the safety of people walking and bicycling
[5] Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2019: Aprova a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030.
[6] MUBi (2014), Perguntas Mais Frequentes Sobre Responsabilidade Objectiva.
[7] Loi Badinter” – Loi n° 85-677 du 5 juillet 1985 tendant à l’amélioration de la situation des victimes d’accidents de la circulation et à l’accélération des procédures d’indemnisation, nomeadamente art. 3º:
«Les victimes, hormis [Excepté, sauf] les conducteurs de véhicules terrestres à moteur, sont indemnisées des dommages résultant des atteintes à leur personne qu’elles ont subis, sans que puisse leur être opposée leur propre faute à l’exception de leur faute inexcusable si elle a été la cause exclusive de l’accident»
[8] ACA-M, Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada 2015: Um desastre não é um acidente.
[9] Transportation Alternatives, Avoid the Word “Accident”.
[10] Petição “Pelo Direito a Pedalar em Segurança”
[11] Petição Nº 236/XIII/2, Solicitam a adoção de medidas com vista à defesa do direito a pedalar em segurança.
[12] Resolução da Assembleia da República n.º 29/2019, Recomenda ao Governo a adoção de medidas que visem a redução do risco rodoviário sobre os utilizadores vulneráveis.

O documento original que fizemos chegar à ANSR está disponível AQUI.

Comments are closed.