Gandhi Clarkson

Nota: O Reino Unido (e países cujo sistema legal herda historicamente dele como o Chipre e Malta), a Roménia e Portugal são dos poucos países da Europa que não têm Responsabilidade Objetiva ou têm-na mal e tardiamente definida em caso de sinistros que envolvem os mais vulneráveis. A MUBi tem defendido que a introdução do Princípio da Responsabilidade Objetiva (conhecida em muitos países da Europa por vários nomes, por exemplo Loi de Badinter, Strict Liability, Betriebsgefahr) de forma clara e explícita, na legislação portuguesa. Este conceito é aliás o espírito da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho: “Os danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem habitualmente a parte mais vulnerável num acidente, deverão ser cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente caso tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional.”. Parte integrante da Responsabilidade Objectiva é a Presunção da Responsabilidade. Para contribuir para o debate que urge traduzimos (obrigado Rui Martins!) este artigo do Carlton Reid:  Who to Trust Most on Post-Crash Compensation, Mahatma Gandhi or Jeremy Clarkson?

 

Presunção de Responsabilidade: não se trata de ciclistas e peões a atirar-se para baixo dos carro em busca de dinheiro – trata-se de justiça.

Carlton Reid, Ciclista e Autor,

Quando alguém se enfia pela traseira do nosso carro, é aceite que a pancada é “culpa” dele. É verdade, pode haver fatores atenuantes mas, no entanto, o condutor de trás é geralmente responsável por quaisquer danos resultantes da colisão. Os danos podem ter sido em parte causados por ações suas (talvez você tenha travado de repente para evitar esmagar algum gato?) mas, para efeitos de seguro, o condutor do automóvel de trás é quase sempre considerado o principal culpado, porque ele ou ela não deveria ter ido a “pisar o seu rabo”. Devido a esta chamada “presunção de responsabilidade” raramente existem quaisquer disputas por parte da companhia de seguros que representa o “pisa-rabos” e eles chegam-se à frente pagando as despesas pelos danos causados ao seu carro. Se existirem circunstâncias atenuantes – o tal gato que não foi esmagado, por exemplo – podem ser usadas pela empresa de seguros do “pisa-rabos” para tentar reduzir qualquer pagamento.

Ao mesmo tempo que para conflitos entre carros a presunção de responsabilidade é tão tradicionalmente britânica como o “fish-and-chips”, não existe uma presunção de responsabilidade genérica para colisões que envolvam automobilistas e outros utentes da via como ciclistas e peões. A este respeito a Grã-Bretanha está estacionada num limbo, em companhia da intrépida Malta. A presunção de responsabilidade para todos os utentes da estrada é a norma em quase todos os outros países europeus. Na França, Itália, Países Baixos e praticamente em todos os outros sítios – incluindo a Alemanha, terra da Mercedes-Benz, Opel e BMW – as companhias de seguros aceitam que conduzir é inerentemente arriscado para todos os que não estão protegidos por um exo-esqueleto de aço e de alumínio. Assim como se presume que um condutor que vai a “pisar o rabo” de outro é culpado em qualquer embate, da mesma maneira na maior parte da Europa os automobilistas são considerados culpados – para efeitos de seguro – quando batem em todo e qualquer outro utente da via.

Em países onde as pessoas têm mais carros do que nós (Inglaterra), e em que os conduzem mais vezes também, ciclistas e peões que são atropelados por carros são automaticamente compensados através das apólices de seguro dos condutores em causa. Na Grã-Bretanha (e noutros principais “world-players” como o Chipre) os ciclistas e os peões lesionados têm de exigir uma indemnização ao condutor o que geralmente significa um litígio demorado, caro e muitas vezes infrutífero contra uma companhia de seguros intransigente e inerentemente insensível. Infelizmente, alguns dos afetados já não estão presentes para lutar e são as suas famílias enlutadas que tem que batalhar em seu nome.

A presunção de responsabilidade desloca para o condutor o ónus de provar que o “acidente” foi causado pelo utente não motorizado da via. Se o condutor poder provar, para além de qualquer dúvida, que o ciclista ou o peão estava completamente em falta, a companhia de seguros do condutor não terá que pagar um cêntimo. (Naturalmente, que isto será um caso raro porque a própria ação de pôr a andar na via pública um automóvel pesado e teoricamente rápido, quando outros modos de transporte estão muitas vezes disponíveis, é a admissão de facto de que foi feita uma escolha consciente para usar uma maquina potencialmente letal – na verdade, é como levar uma bazuca para um jogo de sociedade).

Cada vez que na Grã-Bretanha é proposta a extensão a ciclistas e peões da “presunção de responsabilidade”, cai o Carmo e a Trindade nos nossos destemperados órgãos de comunicação social . O conceito é retratado como uma imposição estrangeira, uma diretiva autoritária de Bruxelas, uma ameaça à liberdade britânica. Há violentas, reclamações anónimas acerca de ciclistas que se atiram para a frente de veículos automóveis em movimento, a fim de exigir suculentas indemnizações. Tais alegações foram propaladas recentemente quando a estrela de ciclismo olímpico Chris Boardman abordou o assunto da presunção de responsabilidade numa entrevista ao Evening Standard, de Londres.

Ao ler esse artigo o diretor para os transportes do Institute of Economic Affairs enfureceu-se. Richard Wellings, economista liberal com uma aversão à bicicleta-como-meio-de-transporte, alegou que o lóbing de Boardman a favor da presunção de responsabilidade resultaria num “tratamento especial para os ciclistas à face da lei”, que “mina princípios fundamentais da justiça.”

Os meios de comunicação engolem por inteiro estas alegações, mas qualquer jornalista que se desse ao trabalho de fazer um pouco de pesquisa, depressa descobriria que a presunção de responsabilidade é uma questão civil, não criminal e, como é mostrado no exemplo dos embates por trás, o conceito de atribuição de culpa para fins de seguros tem sido uma prática aceite na Grã-Bretanha desde há muitos anos.

A “RoadPeace” defende a inversão do ónus da prova em colisões entre veículos automóveis e peões ou ciclistas. “O ónus de provar que a vítima causou a colisão deve estar na companhia de seguros do condutor”, diz um comunicado da organização. “Defendemos também que as crianças, os idosos e as pessoas com deficiência devem receber uma compensação integral, independentemente de suas ações.”

Em 2002, Jeremy Clarkson ii considerou a presunção de responsabilidade uma “ideia maluca” e perguntou “quando é que as pessoas vão entender que as estradas são para os carros e que nenhum perigo virá dos condutores aceleras se os peões e ciclistas saírem do caminho?”

É claro que a pergunta de Clarkson era irónica e comentadores mais sérios foram claros sobre onde reside a culpa em muitos “acidentes”. Kevin Clinton, diretor de segurança rodoviária na Royal Society for the Prevention of Accidents (RoSPA), disse: “Em acidentes que envolvem ciclistas adultos é o automobilista que mais frequentemente está em falta.”

O especialista da RoSPA acrescentou: “Quando obtém a carta de condução está a concordar em tomar mais responsabilidade na segurança.” (Pense naquele pequeno cartãozinho não como um direito humano básico, mas como uma licença de porte de arma).

As organizações automobilistas britânicas têm frequentemente argumentado que a presunção de responsabilidade faria disparar o preço do seguro automóvel, mas quando a medida foi introduzida na Bélgica há vinte anos não houve duplicação nem triplicação dos prémios – aumentaram apenas 5 por cento.

A presunção de responsabilidade não é uma coisa de defesa de interesses de grupo, não é uma medida manipulada para favorecer os ciclistas. Na realidade com a presunção de responsabilidade, no caso de um ciclista atingir um peão, de imediato o ciclista, para fins de seguros, seria considerado culpado e o peão atingido poderia reclamar contra o ciclista. (A muito difundida alfinetada de que “os ciclistas não têm seguro” é insustentável – na Grã-Bretanha, a maioria das apólices de seguro de habitação cobre passageiros, incluindo os de bicicleta contra reclamações de terceiros por ocorrências na rua, e organizações de ciclistas, como a CTC e a British Cycling – ou a FPCUB e a FPC em Portugal – também incluem o seguro como uma parte integrante da inscrição.)

Mahatma Gandhi que nunca conduziu, mas caminhou e andou de bicicleta, disse uma vez algo que ficou famoso: “A grandeza de uma nação é medida pela forma como trata os mais frágeis.” A presunção de responsabilidade é forçar os fortes a respeitar os fracos e é uma medida proporcionada e equitativa, não é um brinde para aqueles peões e ciclistas que, num mundo de fantasia, planeiam atirar-se para baixo de carros em movimento.


Carlton Reid é o editor executivo da BikeBiz.com. Conduz um Nissan Note “mas não com muita frequência.” Escreveu um livro de história sobre os inícios na bicicleta do automobilismo, “Roads Were Not Built For Cars” (As Estradas Não Foram Construídas Para os Carros). Tem sido # 1 na categoria automóvel na Amazon.com.

i) RoadPeace é uma organização sem fins lucrativos de apoio às vítimas de acidentes de viação

ii) Controverso apresentador de programa popular Top Gear recentemente demitido por abusos sobre os produtores

2 Responses to Em quem devemos confiar na compensação pós-sinistro, Mahatma Gandhi ou Jeremy Clarkson?

  1. Frederico Almeida diz:

    Caro Guilherme, fique sabendo que você é um autêntico animal, mas no sentido literal da palavra.

    Decartes definia o animal como uma besta sem alma, sem racionalidade, sem capacidade crítica ou analítica, que apenas se movia (animação) em função dos instintos (para um teólogo e racionalista como Descartes, o mal). Ora alguém que se move (na estrada ou nos pensamentos) apenas pelo lado mais primário sem a mínima réstia de racionalidade, que se move apenas pelo ódio ao próximo, sem humanismo, é, etimologicamente falando, um autêntico ani-mal, ou seja, o mal animado.

    Mulheres e psicólogos costumam ajudar a resolver esse tipo de frustações.

  2. guilherme diz:

    Na qualidade de Condutor, Motard por paixao e utilizador de bicicleta, por ocasião, ao ler os vossos comentarios e debates e chorrilhos de disparates, tenho a dizer lhes o seguinte: …. meus queridos … voces podem inventar o que vos apetecer sobre direitos dos ciclistas e deveres dos automobilistas mas a realidade sempre sera esta: bicicletas nao sao veiculos e ciclistas nao sao condutores enquanto nao estiverem sujeitos aos mesmos deveres dos automobilistas. JÁ VI uma bicicleta provocar um acidente de onde resultaram vitimas fatais nos passageiros de dois automoveis pelo simples facto de um ciclista fazer uma curva em velocidade inadequada e invadir parcialmente a via de sentido contrario.
    O condutor do automovel desviou se … o acidente sucedeu e o ciclista abandonou o local sem olhar para tras.
    Foi lamentavel por todos os motivos, principalmente por o condutor ter tendado poupar o ciclista, eu tê-lo-ia passado a ferro (sim podem dizer que fui eu que disse, já o admiti frente a um juiz).
    Quanto as responsabilidades dos ciclistas a coisa resolve se de maneira muito simples, se partiu, paga, nao ha de ser com o meu contributo e dos outros condutores que verte para o Fundo de Garantia Automovel, que se há-de sustentar chulos como voces.
    Obvio que ainda ao repararam, mas esta nova mania de querer ter direitos sem deveres so chama a atençao de forma negativa ao ponto de qualquer ciclista na estrada ser um alvo a abater, por mim falo e sim, podem tambem dizer que fui eu que disse, a tolerancia que tinha para com os ciclistas diminuiu quase ate ao valor zero, e garantidamente presto vos mais atençao sem duvida, mas a espera da primeira asneira que façam … querem imitar os restantes paises da europa? força nisso! Mas comecem pelo civismo e nao pelo oportunismo voces tem as ciclovias que todos pagamos e so voces podem usar, querem ser livres de escolher itinerários? andem a pé ou conduzam um veiculo que os veiculos nao andam tambem nos passeios que pertencem aos peoes com o argumento de poder escolher o itinerario que melhor convem aos veiculos e voces … veem se as dezenas a circular nos passeios.
    Acho que por agora já chega, fico a espera de vos ver novamente nas urgencias a queixarem se do “carro que vos atropelou”, para me rir e recomendar o costume: PEDALEM DE ARMADURA, OU COMPREM UM CARRO E ANDEM A PÉ.
    É só mais um recado, a juntar aos milhares que vos tem sido enviados mas voces nao prestam atenção por isso … boa sorte e finjam se ofendidinhos.

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