Como é sabido, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) está prestes a implementar um novo conceito de circulação para o eixo da Avenida da Liberdade/Marquês de Pombal.

A MUBi tem seguido de forma muito atenta e activa o desenvolvimento deste projecto, que consideramos globalmente positivo e promete melhorar as condições actuais para os condutores de velocípedes e para os peões. No entanto, as propostas conhecidas até ao momento levantam alguns problemas muitos importantes e deixam outros problemas actuais por resolver.

A convite da gabinete da Vereação da Mobilidade, a MUBi esteve representada em duas reuniões com a Vereação, nas quais teve oportunidade de dar o seu contributo para a consulta pública do projecto, e submeteu a sua contribuição para a consulta pública sobre a forma de um documento onde detalhadamente analisa as várias soluções que foram entretanto propostas e descreve a proposta da MUBi.

O documento completo da contribuição da MUBi está disponível para que todos o consultem: basta seguir este link.


De seguida tentamos resumir os pontos fundamentais da posição da MUBi.

A importância do acesso e da continuidade para velocípedes nas 3 faixas da Avenida

As laterais são o sítio onde está o comércio e os serviços, onde estão as pessoas, os quiosques e as montras, onde há menos trânsito e onde a velocidade deste é mais baixa. É a rota mais natural e mais apetecível para os ciclistas, que não devem ser dela afastados como os restantes veículos com base em critérios que se não lhes aplicam (poluição atmosférica, ruído, excesso de velocidade, congestionamentos, etc).

A subir, a lateral é sempre mais apelativa para um ciclista do que a faixa de rodagem central, principalmente num cenário de apenas uma via banalizada, pois a sua velocidade será, salvo às horas de ponta, significativamente mais reduzida que a do restante tráfego (mesmo que a CML consiga impôr os 50 Km/h de limite máximo da lei…), e não haverá uma segunda via banalizada que possa ser usada para ultrapassagem pelos outros veículos (só no troço entre a rotunda e a Rua Alexandre Herculano é que há 2 vias não-BUS), além de que a subir a questão da poluição é agravada.

Já a descer o ciclista facilmente ganha uma velocidade significativa (30-45 Km/h). Num cenário em cujo objectivo é usar a Av. apenas para atravessamento, o ciclista quererá tirar o máximo de vantagem da velocidade que consegue atingir ao descer para reduzir o seu tempo de viagem global (isto é fundamental num cenário de utilização da bicicleta como meio de transporte utilitário). Nessa situação a faixa central da Av. oferecer-lhe-á as melhores condições para o fazer. Mas o tipo de utilizador de bicicleta e o tipo de utilização da bicicleta que é feita são muito heterogéneos, muito mais do que quando comparando com os automóveis, e haverá utilizadores e/ou utilizações da bicicleta para os quais, mesmo a descer, a lateral será a opção preferencial (contextos de lazer, utilizadores mais vulneráveis como crianças e jovens, utilizadores inexperientes e inseguros, etc).

Como está proposto no projecto da CML, os ciclistas tenderão a contornar a proibição de continuar em frente nos cruzamentos das laterais, misturando-se com os peões nas passagens definidas para estes ou tratando a proibição como uma perda de prioridade, em ambas as situações expondo-se a situações de risco e/ou criando situações de risco e desconforto para os peões, o que é inaceitável.

Os pontos acima explicam a razão pela qual é fundamental garantir a continuidade das laterais para atravessamento veicular pelos velocípedes, bem como a opção de usar a faixa central.

A importância da bidireccionalidade para os ciclistas

É sabido que os ciclistas, tal como os peões, tendem naturalmente a procurar preservar energia (que lhes sai do próprio corpo) ao máximo, tentando evitar paragens e desvios desnecessários, e perdas de cota, e evitar interacções desnecessárias com veículos automóveis por questões de conforto e segurança.

A título de exemplo, como está no projecto, um ciclista que venha da rotunda do Marquês para a Av. da Liberdade e queira aceder a algo na lateral à direita de quem desce, tem que descer até ao cruzamento, perdendo cota, virar à direita e depois subir. Nenhum ciclista vai sujeitar-se a isso, optando por ou 1) circular em sentido proibido ou 2) circular pelo passeio, criando situações de risco para si e para os outros (sejam ciclistas, peões ou automobilistas). O mesmo acontece no cruzamento da Rua das Pretas.

Evitar os conflitos e os sinistros

Para evitar que o tráfego de bicicletas invada o espaço pedonal (passadeiras, passeios e zonas pedonais), degradando a experiência de ambos, peões e ciclistas, e que circule em sentido proibido, e atravesse cruzamentos em sentidos ilegais também, deve ser assegurada a continuidade e a bidireccionalidade para velocípedes [mas não para veículos automóveis] nas laterais. Se não for oferecida uma forma segura, prática e legal de o fazer da forma certa, teremos ciclistas a fazê-lo numa série de formas perigosas, ineficientes, e ilegais, aumentando a entropia nas vias, passeios e cruzamentos, e o risco de conflitos e acidentes.

Proposta da MUBi

Adoptando uma política de servir e melhorar o comportamento natural dos modos activos (que privilegiam a preservação de energia e as rotas mais directas) em vez de o combater com pouco sucesso, e de reequilibrar a hierarquia de prioridades dos modos e usos na cidade, a MUBi propõe completar/alterar a proposta da CML integrando os seguintes pontos fundamentais:

  1. acesso

manter o livre acesso dos velocípedes às 3 faixas de rodagem da Avenida

  1. continuidade

permitir aos velocípedes o atravessamento de toda a Av. pelas laterais, tornando a proibição de seguir em frente nos cruzamentos aplicável apenas aos veículos motorizados

  1. bidireccionalidade

tornar ambas as laterais bidireccionais, excepto para os veículos motorizados. Ou seja, bidireccionais para velocípedes, unidireccionais para os outros veículos. Os sinais estão previstos no Regulamento de Sinalização de Trânsito. Apenas têm que ser pensados com cuidado adicional as entradas e saídas para acautelar os diferentes fluxos de tráfego (nomeadamente pela semaforização) e garantir que estes se cruzam de forma informada e segura. De resto, é algo implementado e muito comum em vários países europeus, há décadas, com óptimo registo a nível de segurança.

 

Exemplo de Lisboa, zona de Belém:

(Foto: Miguel Bessa, Lisboa em Bicicleta)

garantir que a faixa de rodagem das laterais tem uma largura de 4,00 m, de modo a possibilitar uma circulação segura para os velocípedes em ambos os sentidos, mas que não acomode automóveis estacionados ilegalmente; a bidireccionalidade deverá ser implementada sem recurso a corredores segregados, mas sim com uma combinação de sinalização vertical e marcações rodoviárias padrão e, eventualmente, alguns tratamentos pontuais nos cruzamentos (semaforização, passagens para velocípedes, pinturas, ou ilhéus direccionais). Algo como a imagem abaixo, mas com traço descontínuo:

assegurar, em intervalos regulares, do lado do contra-sentido para velocípedes, pequenos refúgios de 5 metros de comprimento e 1 m de largura para facilitar o cruzamento de velocípedes de maiores dimensões (bicicletas com atrelados de crianças ou carga, triciclos, etc) com veículos mais largos, pesados de passageiros ou de mercadorias sem obrigar a uma redução de velocidade desnecessária de ambos

Outras questões relevantes:

  1. linha de paragem avançada nos semáforos (a.k.a. “bike boxes”)

zona de paragem nos semáforos, reservada (mas não obrigatória) para ciclistas, à frente dos restantes veículos, para minimizar a exposição dos ciclistas à poluição automóvel e para facilitar e tornar mais seguras pela melhor visibilidade as suas manobras no arranque a partir do sinal vermelho, bem como para acomodar melhor as “box left turns” (ver exemplo aqui, aqui e aqui) nas situaçẽs em que as viragens veiculares à esquerda sejam proibidas. A implementar nos semáforos a descer a Av., nos semáforos nos cruzamentos que dão para esta, bem como no semáforo da rotunda exterior no cruzamento com a Av. da Liberdade.

  1. desnivelamento

uma zona partilhada onde se permite a circulação e o estacionamento de veículos automóveis nunca permite, efectivamente, “ligar os actuais passeios às placas centrais proporcionando o usufruto de um espaço contínuo”, por isso mais valeria manter a distinção passeio/faixa de rodagem, evitando mais facilmente que alguns ciclistas optem pelo passeio (empedrado?) em vez da estrada (asfalto), incomodando os peões, mas amenizar essa distinção dando primazia ao peão na faixa de rodagem (chicanes?, “prioridade ao peão”?)

  1. pavimento adequado

a qualidade do piso é fundamental para o conforto e segurança de um veículo leve de 2 rodas como é a bicicleta, pelo que deve ser garantido piso regular (ex.: asfalto) para a circulação dos velocípedes, evitando-se pisos de empedrado / calçada, por exemplo, quer nas laterais, quer na faixa de rodagem central

  1. iluminação pública adequada

principalmente nas zonas de conflito (cruzamentos e passagens pedonais e, eventualmente, de velocípedes): eliminar os jogos de sombras, garantir boa iluminação do pavimento nas zonas onde a atenção do ciclista tem que estar mesmo no trânsito e não no chão, iluminar os próprios ciclistas

  1. estacionamento legal e seguro

parques de estacionamento de curta e média duração para velocípedes junto aos edifícios e interfaces

parques de estacionamento de longa duração para velocípedes nos parques subterrâneos e/ou à superfície junto dos principais edifícios (em termos de número de trabalhadores e/ou de residentes)

a faixa de rodagem livre na lateral deverá permitir o máximo de espaço de circulação bidireccional mas sem permitir fisicamente o estacionamento automóvel ilegal (4,00 m)

a fila única de estacionamento automóvel deverá ser localizada sempre à direita do fluxo de tráfego geral, e não à direita dos ciclistas em contra-sentido, para evitar acidentes por falta de visibilidade (abertura de portas, arranques de saída do lugar, atravessamento de peões, etc)

  1. máxima permeabilidade ao peão

a fila única de estacionamento deverá ser interrompida a cada 25-30 metros com canais protegidos de tomada e largada de passageiros & passagem pedonal, com rampa para fácil acesso de velocípedes e de peões (trolleys, etc)

salvaguarda de um “corredor acessível” nas zonas pedonais, para oferecer uma rota desimpedida, confortável, e amigável para cadeiras-de-rodas, carrinhos de bebé, trolleys, etc

passadeiras pedonais entre as placas dos passeios centrais, a cada cruzamento da Avenida

concentração de todo o mobiliário urbano num corredor de 0.5-1 m no exterior do corredor pedonal junto aos edifícios, que melhore a acessibilidade do mesmo, e que sirva de barreira natural ao estacionamento ilegal, eliminando assim a necessidade de gastar mais dinheiro em pilaretes que constituem sempre um perigo adicional para peões e condutores de veículos de 2 rodas

  1. gestão semafórica

melhorar a fluidez do trânsito automóvel sem deixar de melhorar a do trânsito pedonal

garantir que o tempo de varrimento permitirá tirar dos cruzamentos os ciclistas a tempo, considerando a velocidade destes, a subir, a descer e principalmente a atravessar a avenida

inviabilizar as ondas verdes para os automobilistas que excedam o limite de velocidade, para desincentivar este comportamento comum

eventualmente implementar uma onda verde, sinalizada, nas laterais (e na central?…) para 15-25 Km/h a subir e 30-40 Km/h a descer. Um ciclista perde muita energia no pára-arranca, procurando sempre evitá-lo ao máximo. Seria óptimo poder percorrer a Avenida à velocidade natural de um ciclista sem demasiadas paragens, legalmente, sem ter que reduzir a sua velocidade média. Outra possiblidade a estudar são os semáforos accionados pela aproximação dos veículos.

A MUBi reitera o seu interesse e disponibilidade em continuar a colaborar com a CML de forma a, em conjunto, encontrar a melhor solução para servir os utilizadores de bicicleta no eixo em causa nesta proposta de alterações. Estamos muito receptivos e interessados em fazer esta discussão conjuntamente com associações que representem outros actores, como seja a Carris, os operadores de autocarros de turismo, motociclistas, automobilistas, comerciantes, residentes, etc.

Vemos ainda a transformação deste eixo como uma oportunidade de mostrar aos nossos 11 parceiros europeus no âmbito do encontro de Lisboa do projecto VOCA (Volunteers of Cycling Academy), previsto para Fevereiro de 2013, um exemplo nacional e local de boas práticas na promoção do uso da bicicleta para transporte, baseadas na acalmia de tráfego e permeabilidade urbana diferenciada, sem despromover os ciclistas a soluções segregadas desvantajosas como aquelas que temos observado e experimentado noutros países, e também em Lisboa.

Reforçamos ainda a importância de levar a cabo um teste completo neste período experimental, sob pena de não ser possível tirar conclusões fiáveis. Isto vem na sequência do anúncio pelo vereador Nunes da Silva de que foi decidido não fazer diminuição de estacionamento nas faixas laterais da Avenida da Liberdade durante o teste “por se tratar de um período de festas e compras”. Afinal, a solução encontrada tem que valer sempre, pelo que não vemos vantagem em adulterar o teste desta forma.

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