No dia 21 de Julho decorreu na livraria Ler Devagar, em Lisboa, a quarta e última sessão do “Ciclo de Conversas | Lisboa: por uma Cidade Viva e Acessível”. Como foi regra das três primeiras sessões, participaram três das 11 entidades que subscrevem as nossas recomendações para a cidade: a CICLODA – Associação Oficina da Ciclomobilidade, representada pela Júlia Balbinot; o GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, através da Patrícia Tavares; e a MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, com a participação de Ricardo Ferreira.

Esta sessão, moderada pela Laura Alves da MUBi, teve por base a quarta e última secção do documento Lisboa: por uma Cidade Viva e Acessível — Activar a Mobilidade — que se debruça sobre a necessidade de transformarmos a forma como nos deslocamos na cidade. 

Todos os modos de transporte sustentável precisam de melhorar consideravelmente (o andar a pé é muito mal tratado em Lisboa e o Transporte Público ainda precisa de muitas melhorias para que continue a ser a base fundamental das deslocações na cidade), no entanto é o potencial da bicicleta que ainda tem muito a oferecer à cidade das colinas e planaltos. Mas é importante reconhecer que mais deslocações de bicicleta na cidade não significa necessariamente menos carros — e, logo, menos poluição, menos ruído e mais espaço para todos. Nesta sessão, os nossos convidados analisaram as múltiplas formas de reduzir as deslocações em automóvel, melhorando assim a acessibilidade de todos, adaptada às suas necessidades e desejos.

A moderadora Laura Alves começou por destacar que o documento que serviu de base para esta última conversa, apesar de ter sido concebido pela MUBi, teve o apoio de 11 associações que trabalham directa e indirectamente sobre a mobilidade urbana sustentável e, logo, com a cidade de Lisboa. É por isso um manifesto e um conjunto de medidas consensuais entre uma base muito larga da sociedade civil. 

Depois de apresentar os convidados e as entidades a que pertencem, a Laura lançou uma pergunta que tem sido habitual em todas as sessões deste ciclo de conversas: como se deslocaram até à livraria Ler Devagar, na Lx Factory, na freguesia de Alcântara, e também se gostariam de ter usado outro modo de transporte… e se sim, porque não o fizeram? 

Quão fácil é chegar?

O Ricardo, em representação da MUBi, veio de bicicleta, e não gostaria de ter usado outro meio de transporte. Gostaria que o percurso tivesse sido mais confortável, não tendo de pedalar por entre o caos da cidade, mas mesmo assim, a bicicleta é sempre a sua primeira opção. 

Ricardo Ferreira, da MUBI, e Patrícia Tavares, do GEOTA

A Patrícia, do GEOTA, chegou de transportes públicos e fez ainda uma parte do percurso a pé. Geralmente este combo de transportes públicos e andar a pé são a sua primeira opção, apenas usando a bicicleta em lazer. Não tem queixas sobre o transporte público em Lisboa, mas ressalva a facilidade que representa trabalhar e viver dentro de Lisboa, e compreende que pessoas que vivem na área suburbana possam ter mais dificuldades. Usa a aplicação da Carris para se inteirar dos horários, e quando o autocarro ainda demora muito a chegar aproveita para ir andando a pé. 

A Júlia, da CICLODA, chegou de bicicleta, o modo de transporte que usa todos os dias em Lisboa desde há um ano. O problema principal, aponta, são os carris dos eléctricos, mas é algo que quem pedala em Lisboa acaba por estar mais alerta. A Laura rematou que também chegou de bicicleta, nota que os carris dos eléctricos são um problema em Lisboa, pela possibilidade de queda, mas que o que sente mais como um problema, para o percurso de hoje, é a falta de parqueamento seguro na Lx Factory. Refere que, muitas vezes, quem usa bicicleta em Lisboa poderá não ir a certo local se sentir que não existe um local seguro para estacionar a bicicleta — e isso representa, seguramente, um obstáculo à mobilidade. 

E, finalmente, fica a pergunta para a Lx Factory, e muitos outros locais de Lisboa: se há lugares para estacionar os carros, porque é que ninguém pensou no estacionamento para as bicicletas?

Complementaridade bicicleta + transporte público e oficinas de apoio à comunidade

Prosseguindo para o debate propriamente dito, a Laura perguntou ao Ricardo: que medidas-chave devem ser tomadas numa cidade para que haja mais pessoas a andar de bicicleta? Baseado no Manifesto, o Ricardo respondeu que não basta dizer às pessoas para andarem de bicicleta, mas como diz o documento, é preciso criar as condições para que seja seguro pedalar em Lisboa. Isso não significa necessariamente a criação de ciclovias, mas sim a existência de bom desenho urbano que reduza a velocidade dos automóveis. 

O Ricardo também considerou que é fundamental haver estacionamento seguro nos bairros para bicicletas, pois em muitos casos, nos prédios mais antigos, as pessoas não têm capacidade de subir vários andares para guardar a bicicleta no seu apartamento. Também referiu que a ideia não é fazer com que todas as pessoas só usem a bicicleta. A bicicleta poderá ser um complemento a outros modos de transporte, como por exemplo, em combinação com o transporte público, ou só para usar em alguns percursos em que a pessoa se sinta mais confortável e segura. Referiu ainda que é necessário haver mais fiscalização. Apesar de termos um Código da Estrada (CE) bastante avançado, ele é violado impunemente, todos os dias, por milhares de motoristas na cidade. Acrescentou ainda que, por isso mesmo,  além de se reduzir o volume de carros em Lisboa, é imprescindível reduzir e, principalmente, fiscalizar a sua velocidade. A Laura reforçou a ideia de que a falta de fiscalização e cumprimento do CE em Lisboa cria um caos no espaço público que, na verdade, seria simples de resolver. 

Laura Alves, moderadora, da MUBi (esq.), e Júlia Balbinot, da CICLODA (dir.)

Seguidamente, a Laura pediu à Júlia que falasse um pouco sobre a CICLODA e a sua origem, a Cicloficina dos Anjos. A Júlia disse que descobriu a Cicloficina dos Anjos precisamente porque teve um problema mecânico na sua bicicleta (as cicloficinas ajudam as pessoas a resolver problemas mecânicos nas suas bicicletas com aconselhamento técnico e ferramentas). A Cicloficina dos Anjos iniciou a sua actividade em 2011, antes de ser fundada a associação CICLODA em 2014. Após uma mudança recente de espaço estão agora localizados ao lado da Assembleia da República e a oficina funciona duas vezes por semana. Nesse espaço continuam a ajudar as pessoas a reparar bicicletas e também fazem a recepção de bicicletas doadas, que reparam e depois disponibilizam a preços acessíveis. No mesmo espaço também funciona a “Femina” uma vez por mês (na última quinta-feira do mês), uma cicloficina de e para mulheres e pessoas trans e não binárias. Depois de a Laura ter destacado a importância de uma comunidade de apoio à reparação de bicicletas, a Júlia referiu que fazer com que as pessoas tenham uma relação de maior conhecimento e proximidade com a sua bicicleta, faz com que a usem mais.

O poder (incerto) da intermodalidade

Fazendo a ponte com o GEOTA, que tem um grupo de trabalho sobre Energia, Mobilidade e Transportes — e que desde há várias décadas tem publicado pareceres e comunicados sobre políticas nacionais do sector dos transportes — a Laura perguntou à Patrícia se este organismo tem também actuação ao nível autárquico e em Lisboa em particular? A Patrícia respondeu que o GEOTA actua o mais genericamente a nível ambiental e nacional. Referiu, por exemplo, uma recente tomada de posição sobre o novo aeroporto. Em termos de políticas de mobilidade, o GEOTA é contra o primado do automóvel e defende formas de mobilidade mais sustentável como a ferrovia (onde deve ser possível transportar a bicicleta). No fundo, a defesa da intermodalidade. Defende também a descentralização dos empregos, demasiado centralizados em Lisboa. 

Pegando na deixa, a Laura reforçou a importância da intermodalidade e do transporte de bicicletas no Transporte Público. Deu o exemplo da Carris, que tem duas linhas que permitem o transporte de bicicletas. No entanto, por várias razões o autocarro nessas linhas chega à paragem e não está preparado para levar bicicletas, tornando-se assim um serviço incerto e, por isso, de pouca utilidade prática para quem precisa de confiar nele. A Laura referiu ainda que os barcos da Transtejo também têm uma capacidade muito limitada.

Das palavras às acções

De seguida a Laura perguntou ao Ricardo: o que ainda falta fazer em Lisboa e como tem a MUBi trabalhado para que tenhamos uma Lisboa viva e acessível? O Ricardo referiu que, apesar dos progressos dos últimos anos, ainda nos falta muito (mesmo sem nos compararmos a sociedades como a Holanda). No fundo estamos atrasados, porque começámos atrasados, mas também porque temos tido falta de eficácia nas decisões políticas. Das palavras aos actos tem havido uma enorme distância. Precisamos de métricas para saber como investir e, finalmente, saber comunicar a razão dos investimentos. Tal como transparece nas medidas preconizadas no documento, a MUBi considera extremamente importante trabalhar com as crianças e as escolas de forma a mudar a cultura de mobilidade. 

O Ricardo chamou ainda a atenção para uma questão interessante: a diferença entre aquilo que as pessoas pensam em matéria de mobilidade e aquilo que os meios de comunicação social “acham” que as pessoas pensam. No entanto, considera que tem de haver mais participação das pessoas nas decisões e também mais e melhor comunicação sobre os objectivos e a razão das medidas adoptadas. E voltou a referir a importância de trabalhar com as escolas,  relembrando um projecto da MUBi Bike to School que teve um grande sucesso nas escolas que participaram. 

A Patrícia aproveitou para referir que a aposta nas novas gerações já se sente na gratuitidade dos Transportes Públicos. De passagem afirmou que a solução terá de passar por meios públicos de transporte e que o carro privado eléctrico não irá resolver os problemas de mobilidade nas cidades. O Ricardo referiu a importância da sinergia entre a mobilidade activa (a pé e bicicleta) e os transportes públicos. Neste ponto a Laura aproveitou para referir a agressividade contra o peão, um fenómeno que parece ter sido exacerbado depois da pandemia — pelo menos, pessoalmente, sentiu-se mais insegura a andar a pé depois dos períodos de confinamento. 

Activar a mobilidade: como?

Dirigindo a pergunta a todos, mas começando pela Júlia, a Laura perguntou: pensem num familiar ou amigo próximo que use o automóvel no seu quotidiano. Que medidas prioritárias deveriam ser tomadas para que ele ou ela altere os seus hábitos de mobilidade?

A Júlia referiu que com o nosso próprio exemplo, ao usar a bicicleta, poderemos influenciar as pessoas mais próximas. A Patrícia assume-se uma grande defensora dos transportes públicos junto das pessoas que lhe são próximas. Acha que a boa qualidade dos transportes públicos e o preço atractivo são factores-chave, mas acredita que haverá sempre pessoas que não irão deixar o carro. O Ricardo refere que ele é uma excepção, porque andar de bicicleta é também o que faz na sua actividade profissional. E até tem a sensação que a maior parte das pessoas que conduz um automóvel não quer magoar ninguém ou, pelo menos, “não quer estragar o carro”. Mas sabe que as excepções mais agressivas são aquelas de que nos lembramos melhor. Em relação à pergunta colocada, ele pensou imediatamente em alguns amigos pessoais e pensa que estes só deixarão de usar carro se: tiverem de cumprir o limite de velocidade de 30 km/h nas ruas dos seus bairro; se tiverem de pagar caro pelo estacionamento; e se ao estacionarem em cima do passeio forem prontamente e fortemente multados. São pessoas que, evidentemente, escolheram locais para viver onde é difícil alguém se deslocar sem ser de carro. 

A Laura referiu ainda que as bicicletas partilhadas GIRA são um projecto importante no que diz respeito a activar a mobilidade e perguntou aos três convidados se já usaram ou usam a GIRA regularmente. O que deverá acontecer para que passem a usar mais? A Júlia, sendo natural do Brasil, quando se mudou para Lisboa teve de usar o cartão de um amigo, pois o título é só para residentes, e ela acha que o sistema devia ser mais aberto a utilizadores de fora de Lisboa. A Patrícia também usa as GIRA, considera o serviço de muita qualidade e muito útil. O Ricardo tem um cartão GIRA desde que o sistema existe na estação do Cais do Sodré, apesar de usar pouco, porque utiliza geralmente bicicleta própria.

Aplicar as boas práticas

Nesta última sessão do ciclo de conversas, concluiu-se então com a “pergunta mágica”: apesar de, politicamente, praticamente todos os partidos políticos parecem estar de acordo em que é preciso reduzir os carros na cidade, porque é que isso não acontece na prática? 

A Júlia acha que devemos começar por criar nas próprias pessoas a vontade de deixarem de usar o carro. A Patrícia acha que o problema é o curto prazo entre eleições, que os políticos fazem política para os votantes e muitos votantes são motoristas. Acredita que a solução poderá ser copiarmos as políticas eficazes que já foram adoptadas noutros países. O Ricardo concorda com a ideia de que o prazo dos mandatos é muito curto e que os políticos governam para os votos da eleição seguinte. Mas recorda que a maioria das pessoas não é motorista: em Lisboa, a maioria é peão. E faz depois a ligação com a primeira conversa deste ciclo organizado pela MUBi: a importância de existir um plano de mobilidade sustentável com objectivos partilhados e métricas para podermos pedir contas aos governantes.

Estes quatro momentos de debate, que decorreram em Junho e Julho, com a gentil presença dos nossos convidados (em representação das associações que subscreveram o nosso documento Lisboa: Por Uma Cidade Viva e Acessível), foram excelentes oportunidades para debater a cidade em que queremos viver. Planear o Futuro, Proteger o Dia-a-Dia, Desenhar Para Todos e Activar a Mobilidade foram os grandes temas trazidos para a mesa, também com a animada intervenção e contributo do público que assistiu às sessões. Agradecemos à Ler Devagar pelo apoio prestado na disponibilização do espaço e equipamento, bem como a todos/as os/as voluntários/as da MUBi que se disponibilizaram para auxiliar na organização. Recordamos que as quatro sessões podem ser vistas no nosso canal de Youtube.

Para aceder rapidamente ao resumo das conversas anteriores, siga as hiperligações abaixo:

1.ª conversa: “Planear o Futuro”, com intervenções da MUBi, ACA-M e Bicicultura

2.ª conversa: “Proteger o dia-a-dia”, com intervenções da ZERO, Estrada Viva e Caracol POP

3.ª conversa: “Desenhar para Todos”, com intervenções da APSI, Mulheres na Arquitectura e Quercus

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