Em julho passado, com dois anos e meio de atraso, o Governo publicou a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal (ENMAP) 2030[1]. Esta veio juntar-se à Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) 2020-2030, publicada em 2019[2]. As duas Estratégias determinam que, até ao final da década, o andar a pé e a utilização da bicicleta deverão ser os principais modos de transporte para perto de metade dos portugueses, perfazendo cerca de 1500 milhões de viagens pendulares por ano em modos activos.

O Primeiro Ministro, António Costa, tem repetidamente afirmado a urgência de as cidades mudarem os seus modelos de mobilidade, adaptando-se a viver sem o automóvel. Contudo, existe um enorme fosso entre a narrativa do governo nesta matéria e a realidade das decisões que toma.

A mobilidade activa fica praticamente de fora da proposta de Orçamento do Estado para 2024 (OE 2024). A única rúbrica destinada à mobilidade activa em toda a Proposta de Lei[3] atribui 1 milhão de euros para a execução das duas Estratégias Nacionais (ENMAP e ENMAC) em 2024 – o que é largamente insuficiente para dar resposta às necessidades e metas das Estratégias. Como termo de comparação, 1 milhão de euros é quanto o governo da República da Irlanda, com metade da população portuguesa, decidiu investir por dia na mobilidade activa.

Quando milhões de cidadãos no resto da Europa têm disponíveis opções de mobilidade seguras, saudáveis e económicas, Portugal é um dos países europeus com mais mortes por atropelamento, com menor extensão de infraestruturas para o uso da bicicleta e cujo governo menos tem investido neste modo de transporte em todo o Continente. 

A ENMAC, que já está no quinto ano de implementação, continua sem liderança política, sem recursos e a progredir a um ritmo extremamente lento. Ao ritmo de transferência modal para a bicicleta da última década, serão precisos 700 anos para cumprir as metas para 2030. Há poucos meses, com os votos favoráveis de mais de 90% dos deputados, a Assembleia da República instou o Governo a aumentar substancialmente os recursos humanos e financeiros para a implementação da ENMAC e da ENMAP[4].

A MUBi saúda os investimentos previstos no OE em transportes públicos. Mas é preciso que estes sejam complementados e articulados com investimentos nos modos activos e, de facto, executados. É muito importante salientar que estes investimentos só poderão ser bem sucedidos se acompanhados pelo desinvestimento do Estado no automóvel individual.

O programa de incentivos à aquisição de bicicletas, que tem sido um sucesso, no quadro de uma ENMAC 2020-2030 sem recursos e estagnada, fica de fora da proposta de OE, e relegado para uma referência no relatório que a acompanha. Com menos de 8 milhões de euros, este programa já apoiou a aquisição de cerca de 20 mil bicicletas para uso utilitário. A MUBi considera que estes apoios deverão passar a ser mais abrangentes e inclusivos: eliminando o limite no número de apoios disponíveis, aumentando a taxa de comparticipação para até 75% em função do rendimento dos beneficiários e também o limite máximo do incentivo em cada tipologia de bicicleta e melhorada a execução do programa de forma a não excluir os grupos de baixo rendimento. Em França, por exemplo, o Plan Velo prevê 500 milhões de euros até 2027 (o que  em Portugal corresponderia a 19 milhões de euros por ano) para apoios à compra de bicicletas, contribuindo não só para a redução do uso do automóvel, como também para impulsionar a indústria da bicicleta no país.

Em plena emergência climática e com o aumento do uso do automóvel, provocando records no consumo de combustíveis, a ameaçar as metas nacionais de redução de emissões até 2030, o Governo tem optado por subsidiar os combustíveis fósseis rodoviários e incentivar o transporte motorizado individual. O programa de incentivo ao abate de veículos em fim de vida deve ser orientado para a redução do parque automóvel e a transferência para os modos mais eficientes e sustentáveis, como os transportes públicos e os modos activos, e a intermodalidade entre eles. No entanto, a proposta apresentada parece mais direccionada para a troca de carros antigos por carros novos, de maiores dimensões e massa (com tudo o que isso implica negativamente em meios urbanos e para a segurança dos utilizadores vulneráveis) e propensos a ser usados mais intensivamente, para além dos custos ambientais da sua produção.

A MUBi apresentou uma lista de 16 medidas prioritárias para o OE 2024[5]. Contamos que uma grande parte delas seja levada à mesa das discussões e veja luz verde no processo de debate do Orçamento na Assembleia da República, contribuindo para acelerar a transição para uma mobilidade urbana mais saudável, justa, eficiente e sustentável.

Rui Igreja, coordenador do núcleo de políticas públicas da MUBi, disse que “esta proposta de Orçamento do Estado é mais uma mancha negra na letargia do Governo em promover a mobilidade activa. Esperamos, agora, que haja coerência dos partidos políticos e responsabilidade nas discussões do OE 2024 para trazer os modos activos para o centro das políticas de mobilidade”.

Notas:

[1] Resolução do Conselho de Ministros n.º 67/2023, de 7 de julho
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-conselho-ministros/67-2023-215338988
[2] Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2019, de 2 de agosto
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-conselho-ministros/131-2019-123666113
[3] Proposta de Lei 109/XV/2 
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=253373
[4] Resolução da Assembleia da República n.º 64/2023, de 7 de junho
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-assembleia-republica/64-2023-214100364
[5] MUBi, Porque é urgente mudar a mobilidade urbana: 16 medidas prioritárias para o OE 2024, 4 de outubro de 2023.
https://mubi.pt/wp-content/uploads/2023/10/MUBi-Medidas-Prioritarias-OE2024.pdf

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