Duas publicações inspiradoras sobre cidades vivas para miúdos e graúdos
A MUBi associa-se à divulgação de dois títulos editados recentemente em português sobre o planeamento urbano e a segurança viária dirigidos a um grupo de utilizadores especialmente vulneráveis – as crianças, – e também aos adultos. Em comum, este livros expõem a alocação actual do espaço público aos diferentes modos de transporte, enfatizando a dificuldade da integração da mobilidade activa nas cidades de hoje. Pedimos aos autores que respondessem a três perguntas sobre as suas motivações e as suas inspirações para a escrita das obras. Publicamos agora as respostas, agradecendo a sua preciosa colaboração na divulgação desta temática.
Se Essa Rua Fosse Minha, com texto de Peter Füssy e ilustração de Thaís Mesquita, publicado em 2023 pela Tudo! Editora
No âmbito da conscientização das crianças em relação ao espaço público e da sua autonomia, qual o principal objectivo do livro?
Peter Füssy (PF): São raros os livros, filmes ou desenhos animados que retratam formas de se locomover e ocupar a rua que não seja de carro. Quando a concretude das cidades e os objetos culturais reforçam todos os dias a primazia do carro, fica realmente difícil imaginar outras possibilidades. Então, penso que o principal objetivo seja nutrir nas crianças novos imaginários sobre a organização das cidades, mostrar que a rua é viva, que ela pode mudar. Enquanto elas exercitam a imaginação, abre-se espaço para pensar como seria um espaço público adequado para o desenvolvimento da autonomia, um espaço em que crianças possam brincar, socializar, experimentar. Mas o livro não se limita a imaginar. Ter autonomia é também ter voz. Passamos da imaginação para ação. Como a criança pode influenciar o seu redor? O livro também mostra que uma criança pode ter voz e catalisar a mudança quando o adulto está disposto a ouvir.
Como abordas os princípios de segurança viária no contexto do uso de bicicletas em espaços públicos sem ser assustador?
PF: O problema central do livro é que um menino quer andar de bicicleta na rua, mas não pode porque é muito perigoso. Tentei mostrar isso do ponto de vista da criança, ou seja, ela não percebe o fato de que carros matam milhões de pessoas por ano. O menino percebe apenas o que pode ver da janela da sua casa, que são carros passando rápido e um diminuto passeio onde pode-se caminhar. Não há espaço para ele e sua bicicleta. Para que ele possa pedalar, o pai precisa (ironicamente) colocar a bicicleta no carro e levá-lo a um parque, que seria o espaço público “adequado”. O objetivo não era “demonizar” o carro, mas questionar o uso que se faz dele. Por isso, recorri ao uso das cores para transmitir um sentimento de opressão. Quando ele olha para a rua dominada pelos carros é tudo cinza e escuro. Quando ele vai ao parque ou imagina (e depois transforma) a rua que ele quer, é tudo mais colorido e vivo.
Tiveste em consideração a diversidade de experiências culturais e urbanas ao desenvolver a narrativa do livro?
PF: Só escrevi este livro porque tive uma outra experiência urbana ao sair do contexto carrocêntrico e caótico de São Paulo e morar em Amsterdão por quase 4 anos. Senti na pele como decisões sobre o uso do espaço público podem afetar a saúde, a liberdade e o aspecto financeiro das famílias. A questão da mobilidade e organização da cidade passa de alguma forma por todas as classes sociais nas grandes cidades em todos os continentes. É um problema global. Quis trazer para a narrativa um pouco deste privilégio que tive de viver por um tempo em uma localidade que há anos tenta se organizar de forma diferente, integrando o transporte público a formas de mobilidade ativa, que se transformam em uma alternativa vantajosa ao uso do carro. Além da mobilidade, percebi como a Holanda tenta tornar o espaço das cidades mais público do que privado, com parques, áreas de lazer e passeios convidativos. Há também no livro um aspecto de experiência intergeracional, quando o pai lembra que em sua época de criança podia-se brincar nas ruas. Quando a rua fica livre do carrocentrismo, todos podem usufruir, crianças, adultos e idosos.
Peter Füssy
Jornalista, especialista em conteúdo multimídia, migrante, cozinheiro particular do Tom e criador do “Derrotando o Trânsito” nas redes sociais. Trabalhou em importantes redações no Brasil, inclusive escrevendo e avaliando carros, até que foi morar em Amsterdão, onde foi convertido ao “culto” da bicicleta e da cidade para pessoas.
Thaís Mesquita
Nasceu em Oliveira (Minas Gerais), e há mais de dez anos que trabalha com ilustração infantil e concept-art para animação. Adora explorar e experimentar diversos materiais e técnicas. Ao longo dos anos, trabalhou com muitas editoras e estúdios de animação na Alemanha e no Brasil e colabora em vários projetos educacionais com as Nações Unidas e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Atualmente, mora na Alemanha e trabalha como freelancer em diversas áreas criativas.
Isto Não É Uma História Infantil, com texto de Liliana Madureira e ilustração de Gabriela Araújo, publicado em 2023 pela ADENE – Agência para a Energia
No âmbito da conscientização das crianças em relação ao espaço público e da sua autonomia, qual o principal objectivo do livro?
Liliana Madureira (LM): O principal objectivo deste livro é a ação. Ativar as crianças e trazer a elas o poder de agir sobre o seu mundo. O poder de (re)criar o seu espaço. Que começa no imaginário, sai para a sua casa, para o seu quintal, para a sua escola e… assim o sonho o permita… para a sua rua. Queremos crianças que pensam, que empreendam, que sejam resilientes. Estas crianças dão trabalho, mas só com trabalho é que conseguimos qualidade. E por isso não podemos esperar que elas despertem por si só para um tema que dizemos constantemente não ser do seu pelouro (a criança não pensa, não vota, não manda, é o futuro, o amanhã, não é o hoje) temos que inverter isto. Precisamos espicaçar a sua criatividade e reflexão. Trazer a elas algumas propostas de como as ruas poderiam ser mais amigas das crianças mas deixar para elas o sonho, o idealizar as ruas onde se sentem felizes. E mais do que sonhar, com este livro gostava também de conseguir criar uma bolsa para o conselho das crianças do Bicycle Heroes, para poderem discutir propostas concretas e implementarem esta mudança. Ação. Habituar as crianças a fazer com pouco, pequenas mudanças, que a prazo se tornem significativas. Se habituem a discutir onde investir e a agir, empreender.
Como abordas os princípios de segurança viária no contexto do uso de bicicletas em espaços públicos sem ser assustador?
LM: O uso da bicicleta em espaço público nunca é assustador, o que é assustador é a forma como os adultos andam ferozes e desgovernados, com outros veículos que são cada vez maiores, mais velozes e mais desligados do espaço envolvente, sem consciência de que o espaço é publico e partilhado e que temos neste espaço gente mais pequena, frágil e que devemos cuidar com amor para que ela cresça conectada com o coletivo, cuide do ambiente onde vive e quando crescer teça um sentimento de pertença, e torne o espaço coletivo ainda mais humano, acolhedor e educativo para quem vem a seguir. Neste livro o que pretendo é que se lute por mudar o ambiente, torná-lo seguro… Para não termos que aprisionar as crianças em casas, com medo que sejam atropeladas nas ruas. As ruas nem sempre foram como as vimos hoje. Basta pensar nos nossos avós e já vimos diferença. Por isso podemos almejar a mesma mudança, mas no sentido positivo, para os nossos netos.
Tiveste em consideração a diversidade de experiências culturais e urbanas ao desenvolver a narrativa do livro?
LM: Tive em consideração a diversidade no que toca a modos de mobilidade, priorizando a pedonalidade e a mobilidade ativa e eficiente, a mobilidade das crianças autónomas. Que pode e deve ser universal em todas as realidades rurais e urbanas. Mas sabendo que o que se pretende do livro é a ação, então serão estas crianças, de diversos contextos, que trarão essa diversidade. O Bicycle Heroes é um projeto internacional que pretende dar vós voz às crianças tendo em conta a sua diversidade e o contexto de cada uma. Portugal juntou-se já em 2022 ao projeto promovido pela BYCS, com o apoio do EIT. Neste momento, já de forma autónoma, estamos a reestruturar para que o projeto tenha sustentabilidade financeira e se consiga criar uma bolsa para que as crianças envolvidas sejam o centro de ação. Não só em termos de propor a cidade onde querem crescer, como começarem a implementar pequenas medidas que concorrem para esses caminhos de mudança sonhada. E por isso, no meu sonho, o caminho passa pela venda do livro e criação de um orçamento para o projeto do Bicycle Heroes – Conselho das crianças.
Liliana Madureira
Mestre em Educação, formada nas áreas de Matemática e Ciências Naturais, tem como paixão resolver problemas e viver a natureza procurando que os mais jovens vivam em consciência, paixão e conectados. A bicicleta tem sido uma forma de trazer essa consciência e respeito pela natureza e também a oportunidade de viver de forma apaixonada e ativa. Gestora de projetos e promotora de desenvolvimento territorial acredita que cada ser tem um potencial único e que é no lugar comum e no confronto construtivo que se cria conhecimento, mudança e constrói um mundo melhor.
Gabriela Araújo
É ilustradora e animadora do Porto. O seu trabalho é uma mistura entre aquilo que lhe apetece fazer e aquilo que é importante de se falar. É mãe, tem dois gatos laranjas, é fã de bicicletas e, no fim do dia, acredita que a resposta para a felicidade está numa boa piada. Especialmente, se for sobre nós mesmos.
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