Foto: Rodas de Mudança.

Hoje a MUBi (Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta) faz anos. Dez anos. Há uma década, quando um utilizador de bicicleta se cruzava com outro na cidade ainda nos cumprimentávamos com um sorriso cúmplice. De facto, anos antes, desmontávamos da “burra” e partilhávamos dois dedos de conversa, porque éramos amigos ou porque queríamos partilhar uma conspiração para uma cidade melhor. E assim foi. Começamos a conversar – primeiro na Massa Crítica, por email, e finalmente pelas redes sociais (que ainda mal existiam). Mas o fundamental foram os encontros físicos, as “desconferências” para debater o que nos preocupava como utilizadores urbanos de bicicleta, o convívio depois da Massa Crítica e os tais encontros casuais a pedalar pela cidade. Mas também lutas aglutinadoras – nessa altura a alteração do Código da Estrada foi muito útil para termos um objectivo tangível comum.

Mas não é demais insistir na importância da “coincidência organizada” da Massa Crítica para o nascimento da MUBi. Muitos dos fundadores conheceram-se na ”última sexta-feira do mês”. Sem teorizar sobre Foucault, Deleuze, ou Latour foi a andar de bicicleta, a usar o corpo e as pernas, com um pequeno sabor de transgressão, que tomamos consciência da possibilidade de mudar a cidade tendo a bicicleta como um dos instrumentos. Sempre evitamos nos apelidar de ciclistas (tal como ninguém se lembrou de se chamar a si próprio ou aos outros “aspiradorista” ou “martelista”), porque o que aspiramos, de facto, foi sempre a uma cidade melhor. Logo ao escrever a missão da MUBi isso era muito claro.  Aumentar o número de utilizadores de bicicleta não é um objectivo em si, mas um efeito secundário positivo para uma cidade mais saudável, bonita, poética e eficaz. Somos a favor do “reconhecimento do direito básico à não-discriminação negativa a nível legislativo e social, bem como a progressiva restauração da natural competitividade da bicicleta em meio urbano face ao automóvel”, mas sempre nos quisemos distinguir do corporativismo mono-modal. Gostamos de cidades e por isso gostamos de bicicletas.

E ao longo dos últimos dez anos escrevemos comunicados, fizemos petições, fomos a escolas, a reuniões com ministros, secretários de estado, autarcas, professores, empresários…, fizemos apresentações na “casa da democracia”, demos pareceres e fornecemos informação a deputados, organizamos tertúlias, sessões de cinema, fomos a câmaras municipais e freguesias. Mas foi preciso conversar muito entre nós e chegar a consensos, porque havia assuntos novos todos os meses, na lenta progressão da sociedade portuguesa para o tímido renascimento do uso da bicicleta como modo de transporte. Para isso também foi muito importante “termos mundo”, o contacto com outras realidades, associações e políticas urbanas europeias. Desde logo aderimos à European Cyclists’ Federation que nos ajudou a alargar horizontes e perceber que muitas das decisões com impacto na mobilidade urbana são tomadas em Bruxelas e na representação portuguesa no parlamento europeu. Foi também muito importante que logo no início da associação tivemos a possibilidade de participar no projecto VoCA – Volunteers of Cycling Academy– patrocinado pela União Europeia e que permitiu que, durante 3 anos, contactássemos e trocássemos experiências com voluntários, activistas doutros países europeus. Ou mais recentemente, pudemos levar jovens portugueses uma semana a Maribor, Eslovénia, para trocarem experiências e projectos com outros jovens europeus no projecto UPGRADE 2015 – Young minds for sustainable European cities.

Apesar de ter nascido em Lisboa e muito da nossa actividade ter sido na região de Lisboa, a MUBi sempre teve voluntários espalhados pelo país e ao longo dos anos escrevemos a muitas câmaras municipais a sugerir, aconselhar, perguntar. No Porto, escrevemos pareceres, tivemos reuniões com autarcas, e fizemos perguntas desconfortáveis, mas necessárias. Mais recentemente criamos uma secção local em Setúbal e outra em Aveiro –  que tentam colaborar com técnicos municipais, divulgam boas práticas ou questionam algumas das decisões inúteis e danosas da gestão autárquica. Participamos activamente todos os anos no Encontro Nacional de Grupos Promotores da Mobilidade Urbana em Bicicleta, tendo organizado o 2º encontro em Lisboa.

Para além da luta pela alteração do Código da Estrada (que acabou por assumir, em 2014, todas as nossas propostas), sempre tivemos uma activa participação no delinear das políticas nacionais em tópicos que, directamente ou indirectamente, dizem respeito à mobilidade sustentável. Sempre tivemos consciência que a mobilidade sustentável é um problema político com soluções políticas. Por isso interpelamos candidatos ao parlamento europeu nas últimas eleições europeias, questionamos regularmente os partidos políticos sobre as suas propostas e reunimos com os grupos parlamentares para alterar opções no Orçamento Geral do Estado.

qualidade e segurança do espaço público sempre foi uma das nossas grandes preocupações. Escrevemos textos seminais e programáticos como os “Princípios de ação para a redução do perigo rodoviário dos utilizadores de bicicleta” ou a divulgar conceitos que na altura eram novidade em Portugal, como a Acalmia de Tráfego. Num pacato verão provocamos um escândalo nacional, ao sugerir a introdução do Princípio da Responsabilidade Objetiva de forma clara e explícita, na legislação portuguesa. E todos os anos durante a “silly season” respondemos com generosidade às perguntas que nos fazem. Contribuímos regularmente para planos do governo e mais recentemente para a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa na esperança que fiquem melhor e principalmente que saiam da gaveta.

E como o nosso objectivo foi sempre bem mais além da bicicleta, nunca nos esquecemos da importância dos outros modos de transporte essenciais para o funcionamento de melhores cidades. Escrevemos 7 regras para com os peões (e sempre nos manifestamos contra o malfadado hábito das autarquias portuguesas de colocar as infraestruturas para bicicletas em cima ou à cota do passeio). Em 2012 fizemos uma petição para que a CP providencie um serviço moderno e eficaz para o transporte de bicicletas (foi uma batalha longa que finalmente resultou na adaptação dos intercidades, mas continuamos à espera e a lutar para que o resto da rede da CP permita o transporte de bicicletas). Também fizemos pressão sobre o Metro de Lisboa para que fossem adoptadas regras mais sensatas. Sempre sem perder de vista a necessidade de vencer as colinas e integrar a bicicleta num sistema verdadeiramente intermodal, não nos esquecemos dos elevadores em Lisboa e nas potencialidades inovadoras de Sistemas de Elevação para Bicicletas. Protestámos com a Transtejo e oferecemos colaboração aos profissionais de táxi. E já que falamos da necessária multimodalidade, às vezes, quando temos tempo, assinalamos as Barboseiras do “partidos dos automóveis”.

Ao longo dos últimos dez anos criamos projectos autónomos como por exemplo o Bike Buddy (um projecto de mentorado da utilização da bicicleta em contexto urbano, através do aconselhamento e acompanhamento de novos utilizadores, nas suas primeiras deslocações), o Sexta de Bicicleta (um incentivo ao uso da bicicleta pelo menos uma vez por semana), o Bike to School (apoia várias escolas no sentido de proporcionar aos alunos uma forma segura de descobrirem o uso da bicicleta como meio de transporte para a escola) e já este ano a Cidade Ciclável (uma mapa colaborativo online que para já é um mapeamento de bicicletários mas que ambiciona crescer).
Foram dez anos em que partilhamos algumas frustrações, mas também vários sucessos (Success Story: MUBi unlocks Financial Incentives for E-Bikes in Portugal) e alegrias (Código da Estrada Português entra finalmente no Século XXI). Entretanto a MUBi amadureceu – está cada vez mais organizada, dinâmica, criativa e comunicativa. E o mundo não para. Sempre sentimos que estávamos a empurrar uma porta semi-aberta. Já há cada vez mais sistemas de bicicletas partilhadas em várias cidades do País. A qualidade das ciclovias melhorou um pouco, mas demasiadas continuam a fazer rir ou chorar, conforme as circunstâncias. Boas e más, continuam a ser a proverbial “manta de retalhos”, aparecendo e desaparecendo segundo critérios possivelmente astrológicos. As cidades portuguesas estão com um discurso mais afinado e a dizer, em alguns casos, aquilo que fomos escrevendo ao longo dos anos. Mas ainda há muito pouca coragem política para alterar o estado das coisas, falta planeamento estratégico e participação pública estruturada, regular e transparente. O combate à crise ambiental é agora ainda mais urgente que há dez anos atrás. O abuso do automóvel nas cidades portuguesas continua a ser um desporto nacional, as autoridades continuam a fazer “vista grossa” às infrações que colocam peões e utilizadores de bicicleta em perigo diariamente e continuamos retrógrados e pequeninos quando queremos. Por isso mesmo ainda cá estamos e continuaremos por muitos mais anos. Porque vale a pena e somos sempre optimistas.

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